Paradoxo
na economia: “a gente sabe o que funciona e estamos fazendo exatamente o
contrário”
Ladislau
Dowbor: “O neoliberalismo navega nos conceitos da eficiência e da
competitividade. Isso é uma balela”.
Marco
Weissheimer | novembro 20, 2017
“Estamos
destruindo o planeta em proveito de uma minoria, enquanto os recursos
necessários ao desenvolvimento sustentável e equilibrado são esterilizados pelo
sistema financeiro mundial. (…) Quando oito indivíduos são donos de mais
riqueza do que a metade da população mundial, enquanto 800 milhões de pessoas
passam fome, achar que o sistema está dando certo é prova de cegueira mental
avançada”. Essa é uma das teses centrais do novo livro do economista Ladislau
Dowbor, “A era do capital improdutivo. A nova arquitetura do poder: dominação
financeira, seqüestro da democracia e destruição do planeta” (Outras
Palavras/Autonomia Literária), que analisa a captura dos processos produtivos e
políticos da sociedade mundial pelo capital financeiro.
Na
avaliação do professor titular de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP), o neoliberalismo repousa sobre “balelas” e a
concentração de renda e de riqueza no planeta atingiu níveis obscenos. Em
entrevista ao Sul21, Dowbor fala sobre o seu novo livro e sobre os
desdobramentos dessa hegemonia do capital especulativo no Brasil. O déficit no
Brasil, defende o economista, não foi criado por gastos públicos, mas sim pelo
desvio dos gastos públicos para os bancos no serviço da dívida pública:
“Muito
curiosamente, o teto de gastos paralisa as atividades próprias do Estado em
educação, saúde, segurança, etc., mas libera a continuidade da transferência de
recursos públicos para os bancos. O Brasil tem, hoje, cerca de 60 milhões de
adultos que estão negativados. Essas pessoas não conseguem pagar suas contas
relativas a comprar anteriores e, muito menos, efetuar novas compras. E as
empresas também estão endividadas. Esse sistema é absolutamente inviável”.
Sul21:
O que é, exatamente, o capital improdutivo, conceito central do teu novo livro?
Livro
analisa nova arquitetura do poder econômico e político no mundo. (Divulgação)
Ladislau
Dowbor: Nós devemos distinguir o investimento, produtor de bens e
serviços, que desenvolve atividades econômicas, da aplicação financeira. São
dois campos distintos. No Brasil, se confunde, voluntariamente, investimento e
aplicação financeira. Quando você compra títulos do Tesouro, faz especulações
sobre moedas ou compra ações poderá até ganhar bastante dinheiro, movimentar um
monte de papeis, sem que, com isso, apareça sequer um par de sapatos, uma
bicicleta ou uma escola a mais no país. Você não gerou nada. Se você ganhou
bastante, está se apropriando do que outra pessoa perdeu. Se você previu que o
dólar ia subir, comprou na baixa e ele subiu, quem te vendeu perdeu dinheiro.
Toda
essa esfera de aplicações financeiras é essencialmente especulativa, não
contribuindo para o processo produtivo. O que contribui para o processo
produtivo é o investimento que financia atividades que geram bens, serviços,
empregos, impostos e que fazem a economia girar. Falamos de capital improdutivo
quando passa a render mais você aplicar em papeis do que investir em alguma
coisa. No mundo, hoje, o PIB correspondente à produção de bens e serviços
aumenta em média algo entre 2 e 2,5% ao ano, enquanto que o rendimento dos
papeis aumenta cerca de 7% ao ano. A explicação é muito simples. O dinheiro vai
para onde rende mais. Gerou-se um sistema em que você ganha mais dinheiro
simplesmente teclando no computador do que efetivamente produzindo. Isso é a
expansão do capital improdutivo.
Há uma
segunda questão importante. O capital especulativo e as aplicações financeiras
passam a funcionar em um processo de progressão geométrica. Um bilionário que
aplica seu dinheiro a 5% ao ano ganhará 137 mil dólares por dia. Ele não
consegue gastar tudo e esse dinheiro é reaplicado, fazendo com que, a cada dia,
o juro sobre o estoque de recursos aumente. Temos aí uma expansão que, em
termos financeiros, se chama efeito bola de neve. Esse efeito faz com que
grandes fortunas passam a ter muito mais dinheiro do que conseguem gastar sem
precisar desenvolver nenhuma atividade de produção concreta de bens e serviços.
Ou seja, ele não está sendo útil para a sociedade.
Harvey
(David Harvey) tem razão. Esse capital deixa de ser capital e passa a ser
patrimônio, pois não entra no processo produtivo como um elemento dinamizador.
Isso deforma radicalmente a economia. Conforme cálculo feito pelo IPEA
(Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), quando você faz uma transferência
de renda por meio de um programa como o Bolsa Família, para cada real investido
ele vai gerar R$ 1,78 de aumento do PIB. Isso acontece porque você colocou o
dinheiro na mão de alguém que não vai fazer aplicação financeira ou comprar
letras do Tesouro, mas sim que vai consumir. Esse consumo vai incrementar a
atividade do comerciante, que vai encomendar mais do produtor, o que vai gerar
mais emprego, em um efeito econômico multiplicador. O essencial da deformação
que vivemos é esse deslocamento da forma de remuneração do capital produtivo
relativamente à sua apropriação pelo sistema financeiro.
“Temos uma expansão das capacidades de
produzir, mas não da produção efetivamente”. (Foto: Maia Rubim/Sul21)
Sul21:
Enquanto isso, produtos seguem sendo produzidos. Não deixamos de produzir
sapatos, automóveis, roupas e tudo mais. Há um capital produtivo que segue
participando da produção. Como ele se relaciona com o capital improdutivo e
como um sistema com essas características pode sobreviver? Se aplicar no
sistema financeiro é mais rentável, porque um produtor de calçados seguirá
fabricando calçados?
Ladislau
Dowbor: Nas últimas décadas, tivemos avanços tecnológicos fenomenais. Hoje
produzimos automóveis com muito mais rapidez e menor custo, utilizando
inclusive robôs e coisas do gênero. Na agricultura, temos a expansão da chamada
agricultura de precisão, onde a aplicação de novas tecnologias também permite
um aumento de produtividade fantástico. Ou seja, nós temos uma expansão das
capacidades de produzir, mas não da produção efetivamente porque esta vai
depender do destino final do produto. Um empresário, se não tem para quem
vender, por mais que os sapatos que ele produz sejam úteis, ele fecha.
Então,
o equilíbrio de remuneração das diversas atividades é vital para uma economia
funcionar. Se você tem um dos atores que se apropria de muito mais renda do que
os outros, acaba travando o processo como um todo. É muito interessante pegar o
exemplo da reconstrução da Europa após a Segunda Guerra Mundial. A Europa criou
o Estado de Bem Estar, passando a remunerar os trabalhadores proporcionalmente
ao aumento da produtividade. Na Alemanha, por exemplo, todo aumento da
produtividade de uma empresa é revertido automaticamente em aumento de salário.
E o aumento da produção gera mais mercado. Há um equilíbrio no conjunto do
sistema.
Por
outro lado, os impostos gerados neste processo são utilizados como salário
indireto. Na Alemanha, você tem escola pública gratuita, universidade pública e
gratuita. Há escolas privadas, mas, mesmo nestas, o professor é pago pelo
Estado. Isso é considerado um investimento nas pessoas. Esse salário indireto é
extremamente importante. As pessoas não vivem só com sua renda que entra no
bolso. O canadense tem um salário inferior ao americano, mas ele tem a creche,
a escola e o hospital de graça, tem piscinas em todas as escolas. Ou seja, o
imposto, ao contrário do que ocorre no Brasil, onde ele é chamado de gasto, é
transformado em salário indireto, em um investimento nas pessoas.
“O
paradoxo é esse: a gente sabe o que funciona e estamos fazendo exatamente o
contrário”. (Foto: Maia Rubim/Sul21)
Esse
modelo gera bem estar e é muito mais produtivo do que planos de saúde e coisas
do gênero. Quando você faz saúde pública, por exemplo, se concentra em evitar
as doenças. Já o sistema privado de saúde está interessado na doença. Ele é a
indústria da doença. Se você vai em países como Suécia, França, Alemanha ou
Canadá, verá um sistema de saúde que está preocupado com a qualidade da água,
com a ausência de agrotóxicos nos alimentos e com a diminuição de emissão de
gases pelos veículos nas cidades, para citar apenas essas três coisas. Ou seja,
está preocupado com o conjunto dos elementos que geram a doença. O resultado é
muito interessante. No Canadá, por exemplo, você gasta 3.400 dólares/ano por
pessoa em saúde. Nos Estados Unidos, é mais do dobro disso. No entanto, a saúde
média da população do Canadá é incomparavelmente superior. É simplesmente mais
produtivo.
Quando
você canaliza os recursos de maneira adequada, consegue-se esse tipo de
resultado. Destinar recursos para a saúde pública, para a pequena e media
empresa, para reforçar o salário mínimo e dinamizar o consumo de bens simples:
tudo isso é organização econômica e social que chamamos de governança. O
governo é a máquina administrativa. Governança é fazer o conjunto funcionar.
No
caso do Brasil, quando um dos grupos sociais, como o setor financeiro, se torna
muito mais poderoso do que os milhões de pequenos e médios produtores e passa a
apropriar dos recursos destes, por meio de juros, e do próprio governo, por
meio de leis que, por exemplo, os isentam de impostos, temos uma deformação
sistêmica e o processo trava.
Além
do que ocorreu na Europa, podemos citar o exemplo do New Deal, nos Estados
Unidos, ou o que foi feito na Coréia do Sul. Todos eles se basearam em não enriquecer
os ricos, mas em desenvolver salário direto forte para a população, o que gera
demanda para as empresas, e impostos elevados, mas orientados para
investimentos em infraestruturas que barateiam os processos produtivos e em
políticas nas áreas de educação, saúde e cultura. Esse investimento nas pessoas
aumenta a produtividade do sistema como um todo. O paradoxo é esse: a gente
sabe o que funciona e estamos fazendo exatamente o contrário.
Sul21:
No seu livro você aponta que esse processo de deformação sistêmica da economia
mundial anda de mãos dadas com o fenômeno da captura da esfera da política pelo
sistema financeiro. Esse diagnóstico parece apontar para um cenário bastante
sombrio quanto ao futuro da democracia, não?
“Temos
um endividamento generalizado dos governos no mundo com os grandes bancos”.
(Foto: Maia Rubim/Sul21)
Ladislau
Dowbor: Você veja o desastre hoje nos Estados Unidos. Donald Trump se
elegeu dizendo que a Hillary Clinton era ligada ao sistema financeiro. Eleito,
quem ele nomeou para chefiar a sua equipe econômica? O presidente do Goldman
Sachs, o maior banco mundial. No Brasil, em nome da resolução de problemas
econômicos, tivemos um Joaquim Levy na Fazenda e hoje temos um banqueiro
comandando o Banco Central e um banqueiro no Ministério da Fazenda. Na França,
tivemos o peso do sistema financeiro depositado na candidatura de Macron.
Temos,
de modo geral, um endividamento generalizado dos governos no mundo que os
colocam numa relação de dependência com os grandes bancos, donos da dívida. Há
uma mudança dos equilíbrios políticos no planeta. Estávamos acostumados com a
ideia de que, numa democracia, você elege pessoas que representam os anseios da
população. No entanto, hoje, há um desgarramento entre o processo político da
eleição e o processo econômico. Não basta a democracia política. Se você não
tem também democracia econômica, o sistema simplesmente não funciona. Escrevi
um livro chamado “Democracia econômica”, já publicado em várias línguas, que
ajuda a entender esse processo (Conheça
as obras de Ladislau Dowbor, disponíveis em sua página).
Voltando
ao argumento central: onde o sistema funciona? Ele funciona quando se tem uma
forte organização dos fluxos dos recursos financeiros para reforçar a
capacidade de compra das populações e a capacidade do Estado fazer
investimentos em infraestrutura e fazer políticas sociais. Esse processo
dinamiza as atividades, aumenta o volume de impostos tanto pelo consumo quanto
pela atividade empresarial e pelos empregos gerados. Esses impostos fecham a
conta sem gerar um déficit. O déficit no Brasil não foi criado por gastos
públicos, mas sim pelo desvio dos gastos públicos para os bancos no serviço da
dívida pública. Muito curiosamente, o teto de gastos paralisa as atividades
próprias do Estado em educação, saúde, segurança, etc., mas libera a continuidade
da transferência de recursos públicos para os bancos.
Sul21:
Apesar da crise de 2007-2008, o neoliberalismo segue sendo hegemônico e parece
estar apoiado em algumas ideias que se enraizaram no senso comum. Em uma das
primeiras edições do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, o economista
Francisco Louçã disse que a esquerda precisava ter algumas ideias fortes para
enfrentar a força ideológica do neoliberalismo. Que ideias poderiam ser estas,
na sua opinião?
“O
Brasil tem, hoje, cerca de 60 milhões de adultos que estão negativados”. Ladislau
Dowbor: O neoliberalismo navega nos conceitos da eficiência e da
competitividade. Isso é uma balela. Ele está, na verdade, drenando a capacidade
produtiva da sociedade ao se apoderar de recursos que poderiam ser investidos
nas empresas e nas pessoas. O Brasil tem, hoje, cerca de 60 milhões de adultos
que estão negativados. Essas pessoas não conseguem pagar suas contas relativas
a comprar anteriores e, muito menos, efetuar novas compras. As empresas também
estão endividadas.
A
ideia que embasa o funcionamento desse sistema é simples. Se você vai comprar
um fogão em uma loja, encontrará um preço a vista – 420 reais digamos – e um
preço a prazo que é o dobro disso. Esse fogão saiu da fábrica a 200 reais,
pagou 40% de imposto e tem o ganho da loja que o está vendendo por 420. Mas, na
verdade, eles querem vender a 840 reais. A grande massa da população, enganada
pela prestação que cabe no bolso e pelo juro apresentado ao mês, acaba pagando
840 reais por esse fogão. O cidadão que não tem capacidade de comprar a vista
vai pagar 840 reais por um fogão de 200.
Esse
sistema é absolutamente inviável, pois esteriliza a capacidade de
reinvestimento da empresa, que está ganhando muito pouco, e a capacidade de
compra da população. No meio desse processo, há um intermediário que tem um
ganho imenso. É uma economia de intermediários não produtivos.
Buscar
um novo equilíbrio significa taxar fortemente o capital improdutivo e reduzir
os impostos sobre o consumo. Não é preciso aumentar a carga tributária. Basta
começar a cobrar dos improdutivos e desonerar as atividades que dinamizam a
economia.
Alfio Bogdan - Físico e Professor.