Manuel Serrano: Jair Bolsonaro foi eleito
como novo presidente do Brasil. O que supõe a sua eleição para o seu
país, para a América Latina e para o futuro da democracia na região?
Reginaldo Nasser: Quando perguntaram ao ex-presidente
dos EUA, Nixon, na década de 70, se ele temia que o Brasil se tornasse
numa “nova Cuba”, ele respondeu que não.
Que, na verdade, o Brasil poderia se tornar numa “nova China”.
Portanto, sim, tem um efeito em todos os países da região, mas os países
também apresentam as suas particularidades em relação aos militares,
elites e demais sectores da sociedade.
A ditadura no Brasil foi um tema protelado, para que pudesse haver
uma conciliação das classes, ao contrário da Argentina e do Chile. Nesse
sentido, é um assunto não resolvido que voltou com uma força nunca
antes vista.
Ainda assim, até ao momento, há indícios que se trata duma onda
passageira (Trump, Bolsonaro). Contudo, só será assim se houver
resistência e mobilização; e se a mesma estiver conectada
internacionalmente.
Manuel Serrano: diversos comentadores tendem
a descrever o novo presidente como o “Trump dos Trópicos”. Contudo, o
professor escreveu recentemente que “Bolsonaro tenta mimetizar a
linguagem e o estilo de Trump, mas parece se esquecer de que não está à
frente de uma potência mundial”. Onde começam e acabam as similitudes
entre um e o outro?
Reginaldo Nasser: até ao momento a analogia que podemos
fazer é em relação à campanha eleitoral. Muito provavelmente, Bolsonaro
tenderá a manter, durante o seu governo, o estilo Trump de menosprezar a
grande midia e usar o Twitter e um tipo de comunicação informal com
frases chocantes e polémicas.
O Oxford Internet Institute tem feito um acompanhamento dos conteúdos
divulgados por Trump e pelos seus seguidores e concluiu que foram mais
compartilhados na última campanha eleitoral norte-americana
(intercalares) do que em 2016.
Portanto, ao que tudo indica, Bolsonaro continuará a usar essa
técnica, claramente importada dos EUA, uma vez que a mesma ajuda a
desviar a atenção dos problemas do país.
Manuel Serrano: que análise faz da nomeação
do juiz Sérgio Moro como ministro da justiça? Estamos a falar da “fraude
do século”? Coloca esta decisão em causa a operação Lava-Jato e a
imparcialidade do sistema judicial brasileiro?
Reginaldo Nasser: Creio que a escolha do juiz Moro como
ministro da justiça faz parte de um processo que contem vários
elementos. E tal como num grande puzzle, as peças foram-se encaixando
pouco a pouco. Teve inicio com o mensalão, tendo tudo o resto ido no
sentido de alimentar o principal propósito: impedir o PT de chegar ao
poder.
O golpe contra a presidente Dilma mostrou claramente que amplos
sectores da sociedade se articularam com diferentes partes do Estado –
polícia, judiciário, parlamento – para alijar o PT do poder seguindo as
leis e a constituição.
A prisão do presidente Lula e o impedimento das manifestações veio
comprovar isso mesmo. O vice-presidente eleito, o general Mourão, chegou
a declarar que o juiz Moro foi consultado durante as eleições.
Manuel Serrano: o programa de Bolsonaro
inclui medidas que vão contra direitos incluídos na Constituição
Brasileira. O direito à vida, por exemplo, seria vulnerado se fosse
permitido aos policias “matar à vontade” no decurso da sua actividade.
Acredita que o Supremo Tribunal Federal vai ser capaz de impedir que o
presidente viole os direitos fundamentais dos brasileiros?
Reginaldo Nasser: Creio que o governo Bolsonaro encontrará resistência no judiciário, mas, sobretudo no Supremo Tribunal Federal (STF).
Recentemente, a ministra Cármen Lúcia, determinou através duma
decisão liminar que a única força legitimada a “invadir uma universidade
é a das ideias livres e plurais”.
A decisão garante assim a livre manifestação do pensamento e das
ideias contra as decisões de juízes eleitorais que determinaram a busca e
a apreensão de panfletos e materiais de campanha eleitoral nas
universidades, em associações de docentes, e que proibiram aulas com
temática eleitoral, assim como reuniões e assembleias de natureza
política.
Está é sem dúvida uma acção positiva, mas que revela também que há
vários sectores dentro do Estado que atentam sistematicamente contra o
estado de direito.
Manuel Serrano: como foi possível que a
extrema-direita tenha chegado ao poder no Brasil? Quais foram para si os
principais catalisadores deste resultado?
Reginaldo Nasser: Venho analisando há algum tempo o
tema da contra-revolução, que é muito pouco estudado. Se analisarmos com
atenção as obras de Marx, tais como o Manifesto do Partido Comunista e o
18 Brumário de Luís Bonaparte, apreciaremos uma preocupação em relação à
contra-revolução. É preciso entender que a contra-revolução existe
independentemente de a revolução ter acontecido ou não.
No Brasil, estamos falando de um processo que, timidamente, e de
forma conciliatória, promoveu o combate à miséria e o acesso à educação
superior de um percentual pequeno na sociedade.
E permitiu ganhos substantivos para o empresariado em geral e para os
sectores financeiros em particular. Contudo, foi suficiente para
despertar uma reacção quando o momento propicio apareceu. E isso
acontece quase sempre em época de crise económica.
Foi assim que as elites chegaram a um consenso: colocar um fim na era
do PT. Mas, durante essa movimentação, a extrema direita avançou além
do que se esperava. Isso pode ser notado agora em jornalistas,
políticos, e nalguns activistas que ajudaram a fomentar o antipetismo e
agora aparecem como “madalenas arrependidas”. Mas não nos podemos
iludir: esses sectores vão-se acomodar se as coisas “forem bem”.
Manuel Serrano: Polarização, ataques à imprensa, militares no governo. É assim que se suicidam as democracias?
Reginaldo Nasser: Quando avaliamos avanços e
retrocessos na história, é sempre pertinente situar a situação de que
estamos a falar. É inquestionável que a constituição de 1988 e o
processo de mobilização social e política no país após a ditadura
civil-militar foram avanços importantes.
Assim como o foram uma série de movimento sociais, tais como o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Movimento dos
Trabalhadores Sem Teto (MTST).
Contudo, ao mesmo tempo, a democracia tem sido corroída em várias
frentes. Apesar dos avanços alcançados durante os governos do PT, o
Brasil é hoje um país extremamente desigual e violento, sendo óbvio que
são os mais vulneráveis que pagam a conta.
As questões episódicas que afloraram agora são a ponta do iceberg da
reacção dos sectores mais conservadores aos anos de progresso.
Estamos a assistir claramente a como alguns grupos querem fazer um
acerto de contas em todas as áreas. Nesse sentido, chama a atenção os
ataques contra as universidades, os movimentos LGBTs, a
livre-manifestação de ideias…
Manuel Serrano: falámos numa entrevista,
realizada há um ano, sobre as notícias falsas e a parcialidade dos meios
de comunicação no Brasil. Que influência tiveram ambos factores nestas
eleições?
Reginaldo Nasser: Nestas eleições, as redes virtuais,
principalmente o WhatsApp, foram decisivas. Muitos analistas comentavam
que a candidatura Bolsonaro não descolaria, pois não possuía tempo
suficiente no horário eleitoral gratuito.
Mas pela primeira vez, isso não foi decisivo. Os seus apoiantes,
ancorados numa indústria muito bem organizada, tiveram una enorme
influência sobre a eleição.
A jornalista da Folha de São Paulo, Patrícia Campos Mello, revelou
como se montou a indústria das fake news em torno da candidatura de
Bolsonaro. As eleições revelaram também a incapacidade das instituições
de justiça em coibir esse tipo de acções.
Em Dezembro de 2017, uma reportagem da BBC Brasil revelou a
existência de estratégias de manipulação eleitoral e da opinião pública
nas redes sociais, semelhante à usada pelos russos nas eleições
americanas, que tem sido usada no Brasil desde 2012. Nada foi feito para
combater este fenómeno.
Manuel Serrano: Pepe Mujica veio lembrar que
“não há derrota ou triunfo definitivo”. O que pode fazer a oposição, e
todas aquelas pessoas que defendem os direitos humanos, para garantir
que o Brasil continua a ser a maior democracia da América Latina?
Reginaldo Nasser: é compreensível que várias pessoas
entrem em pânico com a eleição de alguém que propaga um discurso
belicista e ameaça os seus críticos.
Alguns lembram-se de 1964, e com razão, já que Bolsonaro fez questão
de elogiar aquele que é o símbolo da tortura no Brasil: o coronel
Ulstra.
Os mais jovens parecem tomados de surpresa, afinal de contas, dizem
eles, a ditadura era coisa do passado. É preciso estar alerta o tempo
todo, mas não podemos entrar num clima de medo: esse é o objectivo do
terror.
Não nos podemos esquecer, em termos de votos totais, que o candidato
vencedor teve à volta de 40% dos votos. E que em termos de votos válidos
– excluindo os votos nulos, brancos e quem não compareceu – estamos a
falar de 55% contra os 45% de Haddad.
Os votos de Haddad vieram, em sua maioria, da região nordeste, dos
mais pobres e das mulheres. Ou seja, a sociedade esta dividida.
Além disso, não nos podemos esquecer que o PT venceu quatro eleições
presidenciais seguidas e muito provavelmente venceria a quinta se Lula
não tivesse sido preso. Creio que se trata de um facto inédito no Brasil
e, possivelmente, no mundo, em que a alternância de poder entre
partidos se verifica mais regularmente.
É preciso, portanto, diferenciar o discurso das acções; muito embora
as palavras e os gestos acabem por configurar uma estrutura social que
encoraje as pessoas a agir por conta própria.
Há elementos nos discursos de Bolsonaro – além de gestos – típicos do
fascismo. Mas até o momento, não se pode falar dum conjunto regular e
organizado de acções fascistas.
Todavia, ele vai procurar agir “dentro da lei”, pois há uma estrutura
institucional permissiva para realizar uma verdadeira “caça as bruxas”.
De aí a importância da comunidade internacional.
Se a ação da extrema direita tem características marcadamente
internacionais, o mesmo deve acontecer em relação à luta democrática.
(https://comitelulalivre.org/comites/)
Alfio Bogdan - Físico e Professor
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