REQTE.(S)
: CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS
TRABALHADORES EM ESTABELECIMENTOS DE ENSINO - CONTEE
ADV.(A/S)
: ADAILTON DA ROCHA TEIXEIRA E OUTRO(A/S)
INTDO.(A/S)
: ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE ALAGOAS
ADV.(A/S)
: SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS
INTDO.(A/S)
: GOVERNADOR DO ESTADO DE ALAGOAS
ADV.(A/S)
: SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS
ADV.(A/S)
: JOSÉ GERALDO SANTANA DE OLIVEIRA
Decisão
Ementa:
Direito constitucional. Ação direta de inconstitucionalidade. Programa Escola
Livre. Lei estadual. Vícios formais (de competência e de iniciativa) e
afronta ao pluralismo de ideias. Cautelar deferida.
I.
Vícios formais da Lei 7.800/2016 do Estado de Alagoas:
1. Violação à competência privativa
da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (CF, art.
22, XXIV): a liberdade de ensinar e o pluralismo de ideias são princípios e
diretrizes do sistema (CF, art. 206, II e III);
2. Afronta a dispositivos da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação: usurpação da competência da União para
estabelecer normas gerais sobre o tema (CF, art. 24, IX e § 1º);
3. Violação à
competência privativa da União para legislar sobre direito civil (CF, art. 22,
I): a lei impugnada prevê normas contratuais a serem observadas pelas escolas
confessionais;
4. Violação à
iniciativa privativa do Chefe do Executivo para deflagrar o processo
legislativo (CF, art. 61, § 1º, “c” e “e”, ao art. 63, I): não é possível,
mediante projeto de lei de iniciativa parlamentar, promover a alteração do
regime
jurídico aplicável aos professores da rede escolar
pública, a alteração de atribuições de órgão do Poder Executivo e prever
obrigação de oferta de curso que implica aumento de gastos.
II.
Inconstitucionalidades materiais da Lei 7.800/2016 do Estado de Alagoas:
5. Violação do
direito à educação com o alcance pleno e emancipatório que lhe confere a
Constituição. Supressão de domínios inteiros do saber do universo escolar.
Incompatibilidade entre o suposto dever de neutralidade, previsto na lei,
e os
princípios constitucionais da liberdade de
ensinar, de aprender e do pluralismo de ideias (CF/1988, arts. 205, 206 e 214).
6. Vedações
genéricas de conduta que, a pretexto de evitarem a doutrinação de alunos, podem
gerar a perseguição de professores que não compartilhem das visões
dominantes. Risco de aplicação seletiva da lei, para fins persecutórios.
Violação ao
princípio da proporcionalidade (CF/1988, art. 5º,
LIV, c/c art. 1º).
7.
Plausibilidade do direito e perigo na demora reconhecidos. Deferimento da
cautelar.
Breve síntese do
caso
1. Trata-se de duas
ações diretas de inconstitucionalidade – ADI 5537 e ADI 5580 – propostas pela
Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimento de Ensino – CONTEE e
pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação – CNTE,
respectivamente, em que se pleiteia a declaração
da inconstitucionalidade da Lei 7.800, de 05 de maio de 2016, do Estado de
Alagoas. A referida norma fundou, no sistema educacional de âmbito estadual, o
programa Escola Livre, prevendo:
“Art. 1º - Fica criado, no
âmbito do sistema estadual de ensino, o Programa “Escola Livre”, atendendo os
seguintes princípios:
I – neutralidade política,
ideológica e religiosa do Estado;
II – pluralismo de ideias
no âmbito acadêmico;
III – liberdade de
aprender, como projeção específica, no campo da educação, da liberdade de
consciência;
IV – liberdade de crença;
V – reconhecimento da
vulnerabilidade do educando como parte mais fraca na relação de aprendizado;
VI – educação e informação
do estudante quanto aos direitos compreendidos em sua liberdade de consciência
e de crença;
VII – direito dos pais a
que seus filhos menores recebam a educação moral livre de doutrinação política,
religiosa ou ideológica;
Art. 2º - São vedadas, em
sala de aula, no âmbito do ensino regular no Estado de Alagoas, a prática de
doutrinação política e ideológica, bem como quaisquer outras condutas por parte
do corpo docente ou da administração escolar que imponham ou
induzam aos alunos opiniões político-partidárias,
religiosa ou filosófica.
§1º Tratando-se de
disciplina facultativa em que sejam veiculados os conteúdos referidos na parte
final do caput deste artigo, a frequência dos estudantes dependerá de prévia e
expressa autorização dos seus pais ou responsáveis.
§2º As escolas
confessionais, cujas práticas educativas sejam orientadas por concepções,
princípios e valores morais, religiosos ou ideológicos, deverão constar
expressamente no contrato de prestação de serviços educacionais, documento este
que será
imprescindível para o ato da matrícula, sendo a
assinatura deste a autorização expressa dos pais ou responsáveis pelo aluno
para veiculação de conteúdos identificados como os referidos princípios,
valores e concepções.
§3º- Para os fins do
disposto nos Arts. 1º e 2º deste artigo, as escolas confessionais deverão
apresentar e entregar aos pais ou responsáveis pelos estudantes, material
informativo que possibilite o conhecimento dos temas ministrados e dos enfoques
adotados.
Art. 3º - No exercício de
suas funções, o professor:
I – não abusará da
inexperiência, da falta de conhecimento ou da imaturidade dos alunos, com o
objetivo de cooptá-los para qualquer tipo de corrente específica de religião,
ideologia ou político-partidária;
II – não favorecerá nem
prejudicará os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas,
morais ou religiosas, ou da falta delas;
III – não fará propaganda
religiosa, ideológica ou político-partidária em sala de aula nem incitará seus
alunos a participar de manifestações, atos públicos ou passeatas;
IV – ao tratar de questões
políticas, sócio-culturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma
justa, com a mesma profundidade e seriedade, as principais versões, teorias,
opiniões e perspectivas das várias concorrentes a respeito, concordando
ou não com elas;
V – salvo nas escolas
confessionais, deverá abster-se de introduzir, em disciplina ou atividade
obrigatória, conteúdos que possam estar em conflito com os princípios desta
lei.
Art. 4º - As escolas
deverão educar e informar os alunos matriculados no ensino fundamental e no
ensino médio sobre os direitos que decorrem da liberdade de consciência e de
crença asseguradas pela Constituição Federal, especialmente sobre o
disposto no Art. 3º desta Lei.
Art. 5º - A Secretaria
Estadual de Educação promoverá a realização de cursos de ética do magistério
para os professores da rede pública, abertos à comunidade escolar, a fim de
informar e conscientizar os educadores, os estudantes e seus pais ou
responsáveis, sobre os limites éticos e jurídicos
da atividade docente, especialmente no que se refere aos princípios referidos
no Art. 1º desta Lei.
Art. 6º - Cabe à
Secretaria Estadual de Educação de Alagoas e ao Conselho Estadual de Educação
de Alagoas fiscalizar o exato cumprimento desta lei.
Art. 7º - Os servidores
públicos que transgredirem o disposto nesta Lei estarão sujeitos a sanções e as
penalidades previstas no Código de Ética Funcional dos Servidores Públicos e no
Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civil do Estado de
Alagoas.” (Grifou-se).
2. As Requerentes
alegam que a norma atacada viola, no aspecto formal, a competência privativa da
União para dispor sobre diretrizes e bases da educação (CF, art. 22, XXIV); e,
no aspecto material, a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), os
valores sociais do trabalho (CF, art. 1º, IV), o
pluralismo político (CF, art. 1º, V), a sociedade livre, justa e solidária (CF,
art. 3º, I), o direito à livre manifestação do pensamento (CF, art. 5º, IV) e
da atividade intelectual (CF, art. 5º, IX), o
direito ao pleno desenvolvimento da pessoa humana
e ao seu preparo para o exercício da cidadania (CF, art. 205), a liberdade de
ensinar e aprender (CF, art. 206, II), o pluralismo de ideias e de concepções
pedagógicas (CF, art. 206, IV), a valorização
dos profissionais da educação escolar (CF, art.
206, V), a gestão democrática do ensino público (CF, art. 206, VI), o padrão de
qualidade social do ensino (CF, art. 206, VII) e a autonomia
didático-científica das universidades (CF, art. 207).
3. Com base em tais
argumentos e, ainda, nos prejuízos que a imediata aplicação da norma pode gerar
à educação, aos alunos e aos professores, as postulantes requerem o deferimento
de medida cautelar determinando a imediata suspensão dos efeitos da
lei.
4. Apliquei o rito do
artigo 10, §1º, da Lei 9.868/1999 e determinei a oitiva da Assembleia do Estado
de Alagoas, do Exmo. Sr. Governador do Estado de Alagoas, do Exmo. Sr. Advogado-Geral
da União e do Exmo. Sr. Procurador-Geral da República.
5. O Governador do
Estado de Alagoas sustentou a inconstitucionalidade da Lei 7.800/2016, por
tratar de matéria de iniciativa privativa pelo Chefe do Poder Executivo, bem
como por estabelecer restrições excessivas à liberdade de ensino.
6. A Assembleia
Legislativa do Estado de Alagoas defendeu a validade da norma. Do ponto de
vista formal, afirmou que o Estado dispõe de competência concorrente para
legislar sobre educação, cultura e ensino. No aspecto material, justificou a
norma
com base na necessidade de vedar a prática de
doutrinação política e ideológica e quaisquer condutas, por parte do corpo
docente ou da administração escolar, que imponham ou induzam os alunos a
opiniões político-partidárias, religiosas e/ou filosóficas,
de forma a proteger a sua liberdade de
consciência.
7. O Advogado-Geral
da União manifestou-se, originalmente, pelo não conhecimento da ADI 5537, em
razão da ilegitimidade ativa da requerente, que não congregaria em seu quadro
um mínimo de três federações, bem como pela inexistência de poderes
específicos para a impugnação da Lei 7.800/2016 em
sede de ação direta de inconstitucionalidade. No mérito, pronunciou-se pelo
deferimento da medida cautelar, ao fundamento de que: (i) teria havido
usurpação da competência legislativa da União para
editar normas gerais sobre educação (CF, arts. 22,
XXIV, e 24, IX); e (ii) haveria colisão frontal entre a norma impugnada e o
princípio do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (CF, art. 206,
III).
8. A Confederação
Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimento de Ensino – CONTEE apresentou,
nos autos da ADI 5537, procuração com poderes específicos para a sua
propositura e o quadro de federações congregadas, superando os óbices
processuais
levantados pelo Advogado-Geral da União para o
processamento da ação.
9. O Procurador-Geral
da República manifestou-se pelo deferimento da liminar e pela procedência do
pedido, por entender que: (i) houve vício de iniciativa por parte da Assembleia
Legislativa do Estado de Alagoas ao legislar sobre matéria de
iniciativa do Chefe do Executivo (CF, art. 61,
§1º, II, ‘c’ e ‘e’), porque a norma impôs à Secretaria de Estado de Educação
obrigações que modificaram suas atribuições e geraram impactos financeiros e
orçamentários; (ii) houve usurpação de competência
privativa da União para legislar sobre diretrizes
e bases da educação nacional (CF, arts. 22, XXIV, e 24, IX); (iii) a norma
impugnada afronta os princípios gerais editados pela União na Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional e a liberdade
constitucional de ensino, por suprimir a
manifestação e discussão de tópicos inteiros da vida social.
É o relatório.
Apreciação do pedido de cautelar
12. Estão presentes,
a meu ver, os requisitos de plausibilidade jurídica e de perigo na demora que
recomendam o deferimento da cautelar para suspender os efeitos da Lei
7.800/2016 em sua integralidade. O perigo na demora é indiscutível, uma vez que
a norma encontra-se em vigor, podendo ensejar a
qualquer tempo a persecução disciplinar de professores.
13. A plausibilidade
do direito invocado, por sua vez, envolverá o exame: (i) da competência
legislativa da União para dispor sobre educação (CF, art. 22, XXIV, e art. 24,
IX); (ii) da competência privativa da União para dispor sobre direito civil
(art. 22, I, CF/1988); (iii) da iniciativa
privativa do Executivo para propor projeto de lei sobre regime jurídico de
servidor público, bem como sobre organização e atribuições de órgãos do Poder
Executivo (CF/1988, art. 61, §1º, II, “c” e “e” art. 63,
I); (iv) do teor do direito à educação, tal como
previsto na Constituição (CF/1988, arts. 205, 206 e 214); e (v) do respeito ao
princípio da proporcionalidade, em sua vertente de adequação entre meios e fins
(CF/1988, art. 5º, LIV, e 1º).
I. A competência
legislativa da União para dispor sobre educação (CF, art. 22, XXIV, e art. 24,
IX)
14. No que se refere
ao poder de legislar sobre educação, a Constituição Federal estabelece: (i) a
competência privativa da União para dispor sobre diretrizes e bases da educação
nacional (CF/1988, art. 22, XXIV), bem como (ii) a competência
concorrente da União e dos Estados para tratar dos
demais temas relacionados à educação que não se incluam no conceito de
diretrizes e bases (CF/1988, art. 24). Confiram-se os pertinentes dispositivos
constitucionais:
Art. 22. Compete
privativamente à União legislar sobre:
[...].
XXIV - diretrizes e bases
da educação nacional;
Art. 24. Compete à União,
aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
[...].
IX – educação, cultura,
ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e
inovação;
15. A Constituição
explicita, ainda, como se dá a distribuição da competência legislativa
concorrente, ao dispor:
Art. 24. [...].
§ 1º No âmbito da legislação
concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
§ 2º A competência da
União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar
dos Estados.
§ 3º Inexistindo lei
federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa
plena, para atender a suas peculiaridades.
§ 4º A superveniência de
lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe
for contrário. (Grifou-se).
16. Assim, em matéria
de diretrizes e bases da educação nacional, há competência normativa privativa
da União; ao passo que, nos demais temas pertinentes à educação, haverá competência
concorrente entre a União e os Estados. No último caso, de
competência concorrente, caberá à União dispor
sobre as normas gerais aplicáveis à educação, ao passo que caberá aos Estados
tão-somente complementar tais normas.[1]
1. Violação à competência
privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases: competência para
dispor sobre a liberdade de ensinar e sobre a promoção humanística do país (CF,
art. 22, XXIV)
17. A competência
privativa da União para dispor sobre as “diretrizes” da educação implica o
poder de legislar, com exclusividade, sobre a “orientação” e o “direcionamento”
que devem conduzir as ações em matéria de educação. Já o poder de tratar das
“bases” da educação refere-se à regulação, em
caráter privativo, sobre os “alicerces que [lhe] servem de apoio”, sobre os
elementos que lhe dão sustentação e que conferem “coesão” à sua organização[2].
18. Portanto,
legislar sobre diretrizes e bases significa dispor sobre a orientação, sobre as
finalidades e sobre os alicerces da educação. Ocorre justamente que a liberdade
de ensinar e o pluralismo de ideias constituem diretrizes para a
organização da educação impostas pela própria
Constituição. Assim, compete exclusivamente à União dispor a seu respeito. O Estado
não pode sequer pretender complementar tal norma. Deve se abster de legislar
sobre o assunto. Confira-se:
Art. 206. O ensino será
ministrado com base nos seguintes princípios:
[...].
II - liberdade de
aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
III - pluralismo de ideias
e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas
de ensino; [...]. (Grifou-se).
19. Do mesmo modo,
não há dúvida de que a regulamentação do tipo de educação apto a gerar “o pleno
desenvolvimento da pessoa” e a “promoção humanística do país” integra o
conteúdo de “diretriz da educação nacional” e, portanto, constitui competência
normativa privativa da União. É intuitivo, ainda,
que a supressão de campos inteiros do saber da sala de aula desfavorece o pleno
desenvolvimento da pessoa.
20. Há, portanto,
plausibilidade na alegação de violação da competência privativa da União para
legislar sobre diretrizes e bases da educação, uma vez que os Estados não detêm
competência legislativa – nem mesmo concorrente – para dispor sobre
princípios que integram as diretrizes do sistema
educacional, como se infere do teor expresso do art. 22, XXIV, CF/1988. Mas não
é só.
2. Violação à competência
legislativa concorrente entre União e Estados para legislar sobre educação:
competência da União para estabelecer normas gerais (CF, art. 24, IX § 1º)
21. Ainda que se
reconhecesse que o Estado tem de competência para dispor sobre a liberdade de
ensinar (o que não me parece ser o caso, como já exposto), o exercício de tal
competência, por meio da norma impugnada, teria deixado de observar os
limites determinados pela Constituição. É que, em
matéria sujeita à competência legislativa concorrente, como já mencionado, cabe
à União dispor sobre normas gerais, ao passo que cabe aos Estados dispor sobre
questões residuais de interesse específico
do ente da federação, desde que, ao tratar do
tema, observe as normas gerais ditadas pela União.
22. Ora, a Lei
9.394/1996 (“Lei de Diretrizes e Bases de Educação”) – norma geral em matéria
de educação – previu que a educação deve se inspirar “nos princípios da
liberdade” e ter por finalidade “o pleno desenvolvimento do educando” e “seu
preparo
para o exercício da cidadania”. Determinou, ainda,
que o ensino deve ser ministrado com respeito à “liberdade de aprender e
ensinar”, ao “pluralismo de ideias e concepções pedagógicas” e com “apreço à
tolerância” (arts. 2º e 3º, II, III e IV).
23. A Lei 7.800/2016
do Estado de Alagoas, muito embora tenha reproduzido parte de tais preceitos,
determinou que as escolas e seus professores atendessem ao “princípio da
neutralidade política e ideológica”. A ideia de neutralidade política e
ideológica da lei estadual é antagônica à de
proteção ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e à promoção da
tolerância, tal como previstas na Lei de Diretrizes e Bases.
24. A imposição da
neutralidade – se fosse verdadeiramente possível – impediria a afirmação de
diferentes ideias e concepções políticas ou ideológicas sobre um mesmo fenômeno
em sala de aula. A exigência de neutralidade política e ideológica
implica, ademais, a não tolerância de diferentes
visões de mundo, ideologias e perspectivas políticas em sala. Veja-se que a
questão não escapou à percepção do Ministério da Educação, que observou, acerca
desta exigência:
"O Ministério da
Educação entende que, ao definir a neutralidade como um princípio educacional,
o indigitado Projeto de Lei contradiz o princípio constitucional do pluralismo
de ideias e concepções pedagógicas, uma vez que tal pluralidade efetiva-se
somente mediante o reconhecimento da diversidade
do pensamento, dos diferentes saberes e práticas.
O cerceamento do exercício
docente, portanto, fere a Constituição brasileira ao restringir o papel do
professor, estabelecer a censura de determinados conteúdos e materiais didáticos,
além de proibir o livre debate no ambiente escolar. Da mesma
forma, esse cerceamento pedagógico impede o
cumprimento do princípio constitucional que assegura aos estudantes a liberdade
de aprender em um sistema educacional inclusivo." (Grifou-se).
25. Na mesma linha, a
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do
Ministério da Educação alertou para o fato de que o projeto de lei violava a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação, esclarecendo:
"4.1. O Projeto de
Lei contraria princípios legais, políticos e pedagógicos que orientam a
política educacional brasileira, que no processo de consolidação da democracia.
apontam para a autonomia dos Sistemas de Ensino na elaboração dos projetos
politico pedagógicos, a liberdade de ensinar e
aprender, o pluralismo de ideias e concepções, a contextualização histórico,
político e social do conhecimento, a gestão democrática da escola, a
valorização da diversidade humana e a inclusão escolar.
4.2. Ao definir a
neutralidade como um princípio educacional, o Projeto de Lei contradiz o
princípio constitucional do pluralismo de ideias e concepções pedagógicas uma
vez que tal pluralidade efetiva-se somente mediante o reconhecimento da
diversidade do pensamento, dos diferentes saberes
e práticas. O cerceamento do exercício docente, portanto, fere a Constituição
brasileira ao restringir o papel do professor, estabelecer a censura de
determinados conteúdos e materiais didáticos, além de
proibir o livre debate no ambiente escolar. Da
mesma forma, esse cerceamento pedagógico impede o cumprimento do princípio
constitucional que assegura aos estudantes a liberdade de aprender em um
sistema educacional inclusivo.
4.3. A contrariedade desse
Projeto de Lei também está na afirmação de que a educação moral e prerrogativa
dos pais, ignorando o Art. 205 da Constituição Federal que determina a educação
dever do Estado e da família, em colaboração com a sociedade,
sem distinguir competências exclusivas dos pais e
da escola, não separando as diversas dimensões do processo educativo, que
envolve apreensão de conhecimentos, a construção de valores e o desenvolvimento
do pensamento crítico.
4.4. O argumento
explicitado no documento de que existem professores que impõem ideologias e
induzem os estudantes a um pensamento único, usado como justificativa para
suposta neutralidade educacional, na verdade, trata-se de uma deturpação da
pluralidade presente no processo de construção de
conhecimento que historicamente esteve presente nos espaços educacionais. Tal
argumento também se propõe a incriminar os professores que manifestam
posicionamentos presentes na sociedade, quando a
diversidade de concepções integra o
desenvolvimento acadêmico social cultural dos estudantes.
4.5. Diante do exposto,
considera-se que o Projeto de Lei diverge das Diretrizes Educacionais
brasileiras estabelecidas pelo CNE, da LDB, do PNE e da Constituição
Federal." (Grifou-se).
26. Desse modo, ainda
que a questão atinente à liberdade de ensinar e ao pluralismo de ideias pudesse
ser objeto da competência estadual concorrente para legislar, há plausibilidade
na alegação de que o Estado, ao exercê-la, usurpou a competência da
União para legislar sobre normas gerais, na medida
em que, a pretexto de complementar as normas nacionais, estampadas na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação, regulou a questão de forma conflitante com o
que disse a LDB, em evidente violação a seus
preceitos. Ora, a competência estadual para
suplementar as normas gerais da União não abrange o poder de contrariá-las.
II. Violação da
competência privativa da União para legislar sobre direito civil (CF, art. 22,
I)
27. A lei alagoana
determinou, ainda, em seu art. 2º, §2º, que as escolas confessionais cujas
práticas forem orientadas por valores morais, religiosos ou ideológicos devem
inserir no contrato de prestação de serviços educacionais informação a tal
respeito e previu, expressamente, que a assinatura
do pertinente contrato configura a autorização dos pais para tal, sendo, portanto,
condição para a veiculação dos referidos conteúdos. Veja-se:
“Art. 2º São vedadas, em
sala de aula, no âmbito do ensino regular no Estado de Alagoas, a prática de
doutrinação política e ideológica, bem como quaisquer outras condutas por parte
do corpo docente ou da administração escolar que imponham ou
induzam aos alunos opiniões político-partidárias,
religiosa ou filosófica.
[...]
§ 2º As escolas
confessionais, cujas práticas educativas sejam orientadas por concepções,
princípios e valores morais, religiosos ou ideológicos, deverão constar
expressamente no contrato de prestação de serviços educacionais, documento este
que
será imprescindível para o ato da matrícula, sendo
a assinatura deste a autorização expressa dos pais ou responsáveis pelo aluno
para veiculação de conteúdos identificados como os referidos princípios,
valores e concepções.” (Grifou-se).
28. Ocorre justamente
que constitui competência privativa da União legislar sobre direito civil (CF/
1988, art. 22, I), matéria que abrange as normas que disciplinam os contratos,
tal como o faz o art. 2º, §2º, da Lei 7.800/2016. Há plausibilidade,
portanto, na alegação de inconstitucionalidade do
art. 2º, §2º, da Lei estadual 7.800/2015 também por este fundamento.
III. Violação à iniciativa
privativa do Executivo para dispor sobre regime jurídico de servidor público,
sobre organização e atribuições de órgãos do Poder Executivo (CF, art. 61, §1º,
II, “c” e “e”, e art. 63, I)
29. Como se nota,
ademais, a norma, que foi produzida por iniciativa parlamentar[3], estabelece
uma série de comportamentos a serem observados pelos professores da rede
estadual de ensino e veda outros tantos, sob pena de serem processados e
punidos
disciplinarmente (art. 7º c/c arts. 1º, 2º e 3º).
Interfere, portanto, com o regime jurídico dos servidores do Executivo, em
desrespeito à iniciativa reservada ao Chefe do Executivo para encaminhar
projetos de lei sobre a matéria (CF/1988, art. 61, §1º,
II, “c”), tal como reiteradamente afirmado pelo
Supremo Tribunal Federal. Veja-se: ADI 2.300, rel. Min. Teori Zavascki; ADI 2.329, rel. Min. Cármen Lúcia; ADI 3.061, rel.
Min. Ayres Britto.
30. Não
bastasse isso, os arts. 5º e 6º da lei determinam que a Secretaria Estadual de
Educação – órgão do Poder Executivo – realize cursos de ética do magistério
para professores, estudantes e responsáveis e imputa a tal secretaria e, ainda,
ao
Conselho Estadual de Educação de Alagoas, a
atribuição de fiscalizar o cumprimento da lei. Confiram-se os dispositivos da
lei alagoana:
“Art. 5º- A Secretaria
Estadual de Educação promoverá a realização de cursos de ética do magistério
para os professores da rede pública, abertos à comunidade escolar, a fim de
informar e conscientizar os educadores, os estudantes e seus pais ou
responsáveis, sobre os limites éticos e jurídicos
da atividade docente, especialmente no que se refere aos princípios referidos
no Art. 1º desta Lei.
Art. 6º- Cabe a Secretaria
Estadual de Educação de Alagoas e ao Conselho Estadual de Educação de Alagoas
fiscalizar o exato cumprimento desta lei.
Art. 7º- Os servidores
públicos que transgredirem o disposto nesta Lei estarão sujeitos a sanções e as
penalidades previstas no Código de Ética Funcional dos Servidores Públicos e no
Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civil do Estado de
Alagoas.” (Grifou-se).
31. Assim, a lei
alterou o regime jurídico aplicável a servidores públicos, dispôs sobre
atribuições de órgão do Poder Executivo e criou obrigação – oferta de curso em
favor de professores, alunos, pais e responsáveis – que implica aumento de
gastos. Há, portanto, plausibilidade jurídica na
alegação de violação ao art. 61, § 1º, “c” e “e”, ao art. 63, I, CF/1988 e,
ainda, ao princípio da separação dos poderes.
IV. Desrespeito ao direito
à educação, com o alcance que lhe confere a Constituição de 1988
32. A educação
assegurada pela Constituição de 1988, segundo seu texto expresso, é aquela
capaz de promover o pleno desenvolvimento da pessoa, a sua capacitação para a
cidadania, a sua qualificação para o trabalho, bem como o desenvolvimento
humanístico do país. Nesse sentido, os artigos 205
e 214 da Carta preveem:
“Art. 205. A educação,
direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada
com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho.” (Grifou-se)
“Art. 214. A lei
estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo
de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir
diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar
a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus
diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes
públicos das diferentes esferas federativas que conduzam a:
I – erradicação do
analfabetismo;
II – universalização do
atendimento escolar;
III – melhoria da
qualidade do ensino;
IV – formação para o
trabalho;
V – promoção humanística,
científica e tecnológica do País.
VI – estabelecimento de
meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto
interno bruto.”(Grifou-se).
33. A Constituição
assegura, portanto, uma educação emancipadora, que habilite a pessoa para os
mais diversos âmbitos da vida, como ser humano, como cidadão, como
profissional. Com tal propósito, define as diretrizes que devem ser observadas
pelo
ensino, a fim de que tal objetivo seja alcançado,
dentre elas a já mencionada (i) liberdade de aprender e de ensinar; (ii) o
pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; (iii) a valorização dos
profissionais da educação escolar. Confira-se o teor
do art. 206, II, III e V, CF/1988:
Art. 206. O ensino será
ministrado com base nos seguintes princípios:
I – igualdade de condições
para o acesso e permanência na escola;
II – liberdade de
aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
III – pluralismo de idéias
e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas
de ensino;
IV – gratuidade do ensino
público em estabelecimentos oficiais;
V – valorização dos
profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de
carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos,
aos das redes públicas;
VI – gestão democrática do
ensino público, na forma da lei;
VII – garantia de padrão
de qualidade.
VIII – piso salarial
profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos
termos de lei federal.
34. No mesmo sentido,
o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o
Protocolo Adicional de São Salvador à Convenção Americana sobre Direitos
Humanos reconhecem que a educação deve visar ao pleno desenvolvimento da
personalidade humana, à capacitação para a vida em
sociedade e à tolerância e, portanto, fortalecer o pluralismo ideológico e as
liberdades fundamentais. Veja-se:
Pacto Internacional sobre
os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Decreto nº 591/1992)
“Artigo 13. [...].
§ 1º. Os Estados-partes no
presente pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que
a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do
sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos
direitos humanos e liberdades fundamentais.
Concordam ainda que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar
efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a
amizade entre todas as nações e entre todos os
grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover
as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.” (Grifou-se).
Protocolo Adicional de São
Salvador (Decreto nº 3.321/1999)
“Art. 13. Direito à
Educação
[...].
2. Os Estados-Partes neste
Protocolo convêm em que a educação deverá orientar-se para o pleno desenvolvimento
da personalidade humana e do sentido de sua dignidade, e deverá fortalecer o
respeito pelos direitos humanos, pelo pluralismo ideológico,
pelas liberdades fundamentais, pela justiça e pela
paz. Convêm também em que a educação deve tornar todas as pessoas capazes de
participar efetivamente de uma sociedade democrática e pluralista e de
conseguir uma subsistência digna; bem como favorecer a
compreensão, a tolerância e a amizade entre todas
as nações e todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos, e promover as
atividades em prol da manutenção da paz.
3. Os Estados-Partes neste
Protocolo reconhecem que, a fim de conseguir o pleno exercício do direito à
educação: [...].
De acordo com a legislação
interna dos Estados-Partes, os pais terão direito a escolher o tipo de educação
que deverá ser ministrada aos seus filhos, desde que esteja de acordo com os
princípios enunciados acima.” (Grifou-se).
35. O próprio
Protocolo Adicional de São Salvador, ao reconhecer o direito dos pais de
escolher o tipo de educação que deverá ser ministrada a seus filhos, previsto
no artigo 12, §4º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, condiciona tal
direito à opção por uma educação que esteja de
acordo com os demais princípios contemplados no Protocolo e que, por
consequência, seja apta ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, à
participação em uma sociedade democrática, à promoção do
pluralismo ideológico e das liberdades
fundamentais.
36. A toda evidência,
os pais não podem pretender limitar o universo informacional de seus filhos ou
impor à escola que não veicule qualquer conteúdo com o qual não estejam de
acordo. Esse tipo de providência – expressa no art. 13, § 5º – significa
impedir o acesso dos jovens a domínios inteiros da
vida, em evidente violação ao pluralismo e ao seu direito de aprender. A
educação é, justamente, o acúmulo e o processamento de informações,
conhecimentos e ideias que proveem de pontos de vista
distintos, experimentados em casa, no contato com
amigos, com eventuais grupos religiosos, com movimentos sociais e, igualmente,
na escola.
1. Direito à educação e
pluralismo de ideias
37. Há uma evidente
relação de causa e efeito entre o que pode dizer um professor em sala de aula,
a exposição dos alunos aos mais diversos conteúdos e a aptidão da educação para
promover o seu pleno desenvolvimento e a tolerância à diferença.
Quanto maior é o contato do aluno com visões de
mundo diferentes, mais amplo tende a ser o universo de ideias a partir do qual
pode desenvolver uma visão crítica, e mais confortável tende a ser o trânsito
em ambientes diferentes dos seus. É por isso que
o pluralismo ideológico e a promoção dos valores
da liberdade são assegurados na Constituição e em todas as normas
internacionais antes mencionadas, sem que haja menção, em qualquer uma delas, à
neutralidade como princípio diretivo.
38. A própria
concepção de neutralidade é altamente questionável, tanto do ponto de vista da
teoria do comportamento humano, quanto do ponto de vista da educação. Nenhum
ser humano e, portanto, nenhum professor é uma “folha em branco”. Cada
professor é produto de suas experiências de vida,
das pessoas com quem interagiu, das ideias com as quais teve contato[4]. Em
virtude disso, alguns professores têm mais afinidades com certas questões
morais, filosóficas, históricas e econômicas; ao
passo que outros se identificam com teorias
diversas. Se todos somos – em ampla medida, como reconhecido pela psicologia –
produto das nossas vivências pessoais, quem poderá proclamar sua visão de mundo
plenamente neutra?[5] A própria concepção que
inspira a ideia da “Escola Livre” – contemplada na
Lei 7800/2016 – parte de preferências políticas e ideológicas. Foi o que
observou Leandro Karnal a respeito do tema em questão:
“[...]. Então, como já
desafiei algumas pessoas antes, me diga um fato histórico que não tenha opção
política. Cortar a cabeça de Luís XVI, 21 de janeiro de 1793? Cortar a cabeça
de Maria Antonieta, 16 outubro 1793? Vamos dizer ‘que pena, coitados
dos reis’, ou vamos analisar como um processo de
violência típico da revolução e assim por diante? Não existe escola sem
ideologia. Seria muito bom que o professor não impusesse apenas uma ideologia e
sempre abrisse caminho ao debate. Mas é uma crença
fantasiosa, [...], de que a escola forma a cabeça
das pessoas, e que esses jovens saiam líderes sindicais. Os jovens têm sua
própria opinião: ouvem o professor, vão dizer que o professor é de tal partido.
Os jovens não são massa de manobra, e os pais e
professores sabem que eles têm sua própria
opinião. Toda opinião é política, inclusive a Escola sem Partido. Eu gostaria
de uma escola que suscitasse o debate, que colocasse para o aluno, no século
XIX, um texto de Stuart Mill, falando do indivíduo e da
liberdade do mercado, ao lado de um texto de Marx,
e que o aluno debatesse os dois textos. Mas se o professor for militante de um
partido de esquerda ou de centro? Também faz parte do processo. Isto não é
ruim. A demonização da política é a pior herança
da ditadura militar, que além de matar seres
humanos, ainda provocou na educação um dano que vai se arrastar por mais
algumas décadas.” (Grifou-se).
39. Está
claro, portanto, que a neutralidade pretendida pela Lei alagoana colide
frontalmente com o pluralismo de ideias, com o direito à educação com vistas à
formação plena como ser humano, à preparação para o exercício da cidadania e à
promoção da tolerância, valores afirmados pela
Constituição e pelos tratados internacionais que regem a matéria.
2. Direito à educação e
liberdade de ensinar
40. A Lei 7.800/2016
traz, ainda, previsões de inspiração evidentemente cerceadora da liberdade de
ensinar assegurada aos professores, que evidenciam o propósito de constranger e
de perseguir aqueles que eventualmente sustentem visões que se afastam
do padrão dominante, estabelecendo vedações –
extremamente vagas – tais quais: (i) proibição de conduta por parte do
professor que possa induzir opinião político-partidária, religiosa ou mesmo
filosófica nos alunos (art. 2º); (ii) proibição de
manifestar-se de forma a motivar os alunos a
participar de manifestações, atos públicos ou passeatas (art. 3º, III); (iii)
dever de tratar questões políticas, socioculturais e econômicas, “de forma
justa”, “com a mesma profundidade”, abordando as
principais teorias, opiniões e perspectivas a seu
respeito, concorde ou não com elas (art. 3º, IV).
41. As aludidas proibições
dirigidas aos professores são formuladas com a indicação expressa de que seu
descumprimento ensejará punição disciplinar com base no Código de Ética
Funcional dos Servidores Públicos e no Regime Jurídico Único dos
Servidores Públicos do Estado de Alagoas (art.
7º).
42. Mais uma vez,
está presente no aludido dispositivo a intenção de impor ao professor uma
apresentação pretensamente neutra dos mais diversos pontos de vista –
ideológicos, políticos, filosóficos – a respeito da matéria por ele ensinada,
determinação que é inconsistente do ponto de vista
acadêmico e evidentemente violadora da liberdade de ensinar. Confira-se, nesse
sentido, o que diz Robert Post sobre o tema[6]:
“[...]. É evidente que
qualquer pretensão de neutralidade política é inconsistente com princípios
elementares da liberdade acadêmica.
A pretensão de
neutralidade política imporia ao professor a exposição de todos os lados de uma
questão controvertida do ponto de vista político. No entanto, qualquer
determinação nesse sentido seria incompatível com o respeito, por parte do
professor, aos standards profissionais que regem a
sua atividade. Basta considerar o caso do biólogo que ensina teoria da
evolução. A teoria da evolução é controversa politicamente porque o significado
literal da Bíblia é objeto de debate político.
Pretender que o biólogo confira tempo igual a uma
teoria de desenho inteligente (theory of intelligent design), somente porque
pessoas leigas, engajadas politicamente, acreditam nessa teoria, é dizer que o
professor, em nome da neutralidade política,
deve apresentar como críveis ideias que a sua
profissão reconhece como falsas. A razão de ser da liberdade acadêmica é
justamente proteger a convicção acadêmica deste tipo de controle político. A
liberdade acadêmica obriga os professores a utilizarem
critérios acadêmicos e não políticos para guiar
sua atividade.” (Grifou-se).
43. Justamente porque
os conteúdos acadêmicos podem ser muito abrangentes e suscitar debates
políticos, Post observa que a permanente preocupação do professor quanto às
repercussões políticas de seu discurso em sala de aula e quanto à necessidade
de
apresentar visões opostas os levaria a deixar de
tratar temas relevantes, a evitar determinados questionamentos e polêmicas, o
que, por sua vez, suprimiria o debate e desencorajaria os alunos a abordar tais
assuntos, comprometendo-se a liberdade de
aprendizado e o desenvolvimento do pensamento
crítico. Veja-se[7]:
“Porque os conteúdos
acadêmicos abrangem todos os assuntos de interesse humano, as ideias dos
professores podem se mostrar politicamente controvertidas em uma infinidade de
maneiras. A regra de neutralidade política imporia aos professores que
permanecessem constantemente vigilantes a respeito
das repercussões de ideias expressas em sala de aula; demandaria a apresentação
de ‘pontos de vista alternativos’ ‘de modo justo’ sempre que uma ideia expressa
em sala de aula pudesse gerar um certo
grau de controvérsia política. É fácil verificar
como esse tipo de norma suprimiria o debate e fragilizaria o objetivo de
provocar nos estudantes o exercício de um pensamento independente. É justamente
em virtude desse objetivo que a liberdade de
ensinar determina que os professores sejam livres
para estruturar e discutir em sala de aula o material que acreditem ser
pedagogicamente mais efetivo, desde que não doutrinem seus alunos ou violem
standards de pertinência e competência pedagógica.”
(Grifou-se).
44. A liberdade de
ensinar é um mecanismo essencial para provocar o aluno e estimulá-lo a produzir
seus próprios pontos de vista. Só pode ensinar a liberdade quem dispõe de
liberdade. Só pode provocar o pensamento crítico, quem pode igualmente
proferir um pensamento crítico. Para que a
educação seja um instrumento de emancipação, é preciso ampliar o universo
informacional e cultural do aluno, e não reduzi-lo, com a supressão de
conteúdos políticos ou filosóficos, a pretexto de ser o estudante
um ser “vulnerável”. O excesso de proteção não
emancipa, o excesso de proteção infantiliza.[8]
45. Vale notar,
ademais, que a norma impugnada expressa uma desconfiança com relação ao
professor. Os professores têm um papel fundamental para o avanço da educação e
são essenciais para a promoção dos valores tutelados pela Constituição. Não se
pode esperar que uma educação adequada floresça em
um ambiente acadêmico hostil, em que o docente se sente ameaçado e em risco por
toda e qualquer opinião emitida em sala de aula. A lei impugnada, nesta medida,
desatende igualmente ao mandamento
constitucional de valorização do profissional da
educação escolar (CF/1988, art. 206, V).
V. Violação ao princípio
da proporcionalidade
46. Não se pretende,
com as considerações acima, afirmar que, em nome da liberdade de ensinar, toda
e qualquer conduta é permitida ao professor em sala de aula, inclusive o comportamento
que cerceie e suprima o debate ou a manifestação de visões
divergentes por parte dos próprios alunos.
47. Tampouco se
pretende equiparar a liberdade acadêmica à liberdade de expressão. A liberdade
acadêmica tem o propósito de proteger o avanço científico, por meio da proteção
à liberdade de pesquisa, de publicação e de propagação de conteúdo dentro
e fora da sala de aula. É assegurada, ainda, com o
fim de permitir ao professor confrontar o aluno com diferentes concepções,
provocar o debate, desenvolver seu juízo crítico. Tem relação com a expertise
do professor, ainda que não se restrinja a ela,
porque as fronteiras de cada disciplina são elas
próprias bastante indefinidas. Tem o propósito de assegurar uma educação
abrangente.
48. A liberdade de expressão,
por sua vez, volta-se à preservação de valores existenciais, à livre circulação
de ideias e ao adequado funcionamento do processo democrático. Não tem relação
com expertise técnica, não tem compromisso com standards
acadêmicos, mas com a condição de cidadão e com o
direito de participar do debate público. No espaço público, todos somos iguais.
Na sala de aula, o professor forma pessoas e avalia os alunos. São, portanto,
direitos distintos, finalidades distintas,
não necessariamente sujeitos aos mesmos limites.
49. Não há dúvida de
que a liberdade de ensinar se submete à consecução dos fins para os quais foi
instituída. Deve, por isso, observar os standards profissionais aplicáveis à
disciplina ministrada pelo professor. Ensinar matemática ou física segue
padrões distintos de ensinar história e geografia.
Cada campo do saber tem seus limites e suas particularidades. Alguns podem
trabalhar com maior objetividade do que outros. E o professor deve ser
preparado para observar os standards mínimos da sua
disciplina, para preservar o pluralismo quando
pertinente, para não impor sua visão de mundo, para trabalhar com os
questionamentos e as divergências dos estudantes. Preparar o professor envolve
a formulação de políticas públicas adequadas – e não seu
cerceamento e punição. Envolve, ainda, a definição
de tais standards com clareza.[9]
50. A norma impugnada
vale-se, contudo, de termos vagos e genéricos como direito à “educação moral
livre de doutrinação política, religiosa e ideológica” (art. 1º, VII), vedação
a “condutas que imponham ou induzam nos alunos opiniões
político-partidárias, religiosas ou filosóficas”
(art. 2º), proibição a que o professor promova “propaganda religiosa,
ideológica ou político-partidária” ou incite “seus alunos a participar de
manifestações, atos públicos ou passeatas” (art. 3º, III).
51. Mas o que é
doutrinação? O que configura a imposição de uma opinião? Qual é a conduta que
caracteriza propaganda religiosa ou filosófica? Qual é o comportamento que
configura incitação à participação em manifestações? Quais são os critérios
éticos aplicáveis a cada disciplina, quais são os
conteúdos mínimos de cada qual, e em que circunstâncias o professor os terá
ultrapassado?
52. A lei não
estabelece critérios mínimos para a delimitação de tais conceitos, e nem
poderia, pois o Estado não dispõe de competência para legislar sobre a matéria.
Trata-se, a toda evidência, de questão objeto da Lei de Diretrizes de Bases da
Educação, matéria da competência privativa da
União, como já observado.
53. O nível de
generalidade com o que as muitas vedações previstas pela Lei 7.800/2016 foram
formuladas gera um risco de aplicação seletiva e parcial das normas (chilling effect)[10],
por meio da qual será possível imputar todo tipo de infrações aos
professores que não partilhem da visão dominante
em uma determinada escola ou que sejam menos simpáticos à sua direção. Como
muito bem observado por Elie Wiesel: “A neutralidade favorece o opressor, nunca
a vítima. O silêncio encoraja o assédio, nunca o
assediado”.[11]
54. A norma é, assim,
evidentemente inadequada para alcançar a suposta finalidade a que se destina: a
promoção de educação sem “doutrinação” de qualquer ordem. É tão vaga e genérica
que pode se prestar à finalidade inversa: a imposição ideológica e
a perseguição dos que dela divergem. Portanto, a
lei impugnada limita direitos e valores protegidos constitucionalmente sem
necessariamente promover outros direitos de igual hierarquia. Trata-se, assim,
de norma que viola o princípio constitucional da
proporcionalidade (art. 5º, LIV e art. 1º), na
vertente adequação, por não constituir instrumento apto à obtenção do fim que
alega perseguir.
55. Também por essas
razões, não tenho dúvidas quanto à plausibilidade da inconstitucionalidade integral
da Lei 7.800/2016.
Conclusão
56. Diante do
exposto, defiro a liminar pleiteada para determinar a suspensão da integralidade
da Lei 7.800/2016 do Estado de Alagoas. Inclua-se em pauta para referendo do
plenário.
Intime-se. Pulique-se.
Brasília, 21 de março de
2017.
Luís Roberto Barroso
Ministro do Supremo Tribunal Federal
________________________
notas:
[1] - SILVA, José Afonso
da. Comentário Contextual à Constituição. 9. ed., São Paulo: Malheiros, 2014,
p. 274-275; FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição
Brasileira de 1988. 3. ed., 2000. p. 178.
[2] - MOTTA, Elias de
Oliveira. Direito educacional e educação no século XXI. Brasília: Unesco, 1997.
p. 91.
[3] - A norma é produto do
Projeto de Lei Ordinária º 69/2015, de autoria do Deputado Ricardo Nezinho.
Disponível em: .
[4]
- [1] SCHLENKER, Barry R. Identity and Self Identification. In: The self and
social life. Nova Iorque: McGraw-Hill Book Company, 1985. p. 65-99.
[5] - FREUD,
Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à
psicanálise e outros textos (1930-1936). In: Obras completas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.
[6] - FINKIN, Matthew W.;
POST, Robert. For the Common Good: Principles of
American Academic Freedom. New Haven: Yale University Press, 2011, livre
tradução.
[7]
- FINKIN, Matthew W.; POST, Robert. For the Common Good: Principles of American
Academic Freedom. New Haven: Yale University Press, 2011, livre tradução.
[8]
- V. RE 590.415, rel. Min. Luís Roberto Barroso, para considerações análogas, no que
respeita ao excesso de tutela do trabalhador e à atrofia de suas capacidades
cívicas.
[9] - V. sobre a
diferenciação entre liberdade acadêmica e liberdade de expressão: FINKIN,
Matthew W.; POST, Robert. For the Common
Good: Principles of American Academic Freedom. New Haven: Yale University
Press, 2011.
[10]
- SCHAUER, Frederick. Fear, Risk and the First Amendment: Unraveling the
Chilling Effect. College of William & Mary Law School Scholarship
Repository. Disponível em:
.
[11] - Frase extraída do
discurso pronunciado por Elie Wiesel quando do recebimento do Prêmio Nobel da
Paz, em dezembro de 1986, livre tradução. No original: “We must take sides. Neutrality helps the oppressor, never
the victim. Silence encourages
the tormentor, never the tormented”.
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