Raimundo
Rodrigues Pereira, um dos maiores jornalistas brasileiros, argumenta, com
fatos, que a condenação de João Paulo Cunha, ex-presidente da Câmara dos
Deputados, foi armada pelo atual presidente do Supremo Tribunal Federal,
Joaquim Barbosa; a publicidade contratada pelo Legislativo foi toda ela executada
O diabo mora nos detalhes, é o ditado. Para tentar entender a
condenação de João Paulo Cunha e dos dirigentes da agência de publicidade
mineira SMP&B por desvio de dinheiro público num contrato de publicidade de
10,7 milhões de reais assinado pelo então presidente da Câmara dos Deputados e
a agência no final de 2003, sugerimos que o leitor comece revendo um curto trecho
da 31ª sessão do julgamento da Ação Penal 470 (AP 470) no Supremo Tribunal
Federal, no dia 16 de agosto do ano passado. Esse detalhe está perto do final
da fala do ministro Joaquim Barbosa, o relator da ação.
Barbosa falara praticamente sozinho durante quase quatro horas.
Sua fala fora repetitiva, pesada. Ele apresentou e reapresentou fatos que
provariam a justeza de sua condenação. Cunha, o principal acusado, teria
cometido quatro crimes: um de corrupção passiva, por ter recebido propina de 50
mil reais; outro, de lavagem de dinheiro, por ter tentado ocultar o recebimento
dessa vantagem; e dois de peculato: um por ter se beneficiado de dinheiro
público, cerca de 250 mil reais da Câmara, através da contratação de um
assessor pessoal, e outro porque teria repassado cerca de 1,1 milhão de reais,
também da Câmara, não para a SMP&B, mas, na verdade, para o PT. Assista:
Os 20 segundos escolhidos pelo repórter estão perto do final da
sessão. Podem ser vistos no YouTube: AP 470, 16/08/12, 2/2. É a segunda parte
da sessão. Barbosa está cansado, nervoso, como se pode ver nos 11 fotogramas da
página ao lado tirados desses 20 segundos. Ele vinha lendo pausadamente seu
voto – longuíssimo, 159 páginas. Teria provado, como escreveu à página 75 e leu
para o plenário, que “o crime” estava “materializado”. Cunha teria desviado a
maior parte do dinheiro da Câmara para o PT por ter contratado a agência
SMP&B para que não fizesse praticamente nada. Dos quase 11 milhões pagos
pela Câmara no contrato, menos de um centésimo seria trabalho feito efetivamente
pela agência.
Assista:
O cronômetro no YouTube marca 1h03min10s, ou seja, essa segunda
parte da sessão já tem uma hora, três minutos e dez segundos de duração.
Aparentemente, então, Barbosa percebe que é preciso destacar também o
contraditório, a defesa de Cunha. Cita, nesse sentido, um trecho da conclusão
do acórdão 430 do Tribunal de Contas da União (TCU), de 2008: o trabalho
efetuado pela agência tem um valor maior, 11,32% do contrato. E, então, de
repente, como se percebesse a extensão da diferença entre o que vinha afirmando
e o que o TCU diz – 11% é mil vezes 0,01% –, interrompe a leitura, ergue a
cabeça, sai do script e, como se falasse diretamente para o espectador da TV
Justiça, que transmite a sessão, fala, gesticulando rapidamente com o indicador
da mão direita, com a mão inteira e com todo o braço: “Uma secretaria disse uma
coisa... o que eu já citei”. Ri rapidamente e conclui: “Foi trocada toda a equipe, que posteriormente diz o contrário”.
Com isso, claramente, o ministro Barbosa tentou passar para o País
a tese de que a absolvição de Cunha e da SMP&B pelo TCU fora armada. No
entender do repórter, isso é uma insinuação grosseira, sem fundamento. E é
pouco provável que Barbosa mantenha esse improviso no acórdão com a sentença a
ser publicada, a princípio, até o final deste mês de março. Não foi o TCU que
tentou armar a absolvição dos acusados. Foram as artes do ministro que
construíram a condenação do STF. Para condenar, Barbosa selecionou,
basicamente, informações dos meses após o 6 de junho de 2005, quando foi feita
a denúncia do deputado Roberto Jefferson sobre a existência do chamado “mensalão”,
e desprezou as principais investigações feitas – das quais a do TCU é apenas
uma – que provam exatamente o contrário, isto é, que não houve desvio de
dinheiro da Câmara dos Deputados no contrato da Câmara com a SMP&B.
Cunha, um parlamentar com sete mandatos populares – de vereador,
deputado federal e estadual –, com uma carreira sem mácula, foi condenado a
nove anos e quatro meses de prisão. A SMP&B era até então uma das principais
empresas de publicidade do País, com mais de 30 anos de atividades. Foi
destruída: em menos de dois meses não tinha mais condições de funcionamento e
demitiu todos os seus quase 200 funcionários.
A condenação de Cunha por corrupção e o suposto desvio de dinheiro
da Câmara, logo na primeira sentença da AP 470, criaram o clima para o que
alguns já chamam hoje, como veremos no último capítulo de nossa história, o
“mentirão”, um julgamento com condenações por indícios, não por provas. No caso
de Cunha foi até pior: ele foi condenado contra as provas. Ele provou que os 50
mil reais recebidos eram de um esquema de caixa dois do PT e apresentou as
testemunhas e os recibos de que gastou esse dinheiro com pesquisas eleitorais.
Mas a maioria dos juízes preferiu condená-lo pelo que supunha ter acontecido. A
ministra Cármen Lúcia, por exemplo, disse que achava que ele tentou esconder o
fato de ter recebido os 50 mil por ter mandado sua esposa, Márcia Regina,
receber o dinheiro e tê-lo feito às claras, deixando recibo.
A GRANDE INVESTIGAÇÃO DA CÂMARA
|-->Ela resultou de pedido do próprio
João Paulo Cunha. Foi de 2005 a 2011 e concluiu: não houve qualquer desvio de
dinheiro público.
Para entender os interesses políticos por trás do escândalo
chamado “mensalão”, um episódio a ser revisto, mesmo que rapidamente, é a
eleição do pernambucano Severino Cavalcanti, do Partido Progressista (PP), a
presidente da Câmara dos Deputados em meados de fevereiro de 2005. Severino
ganhou a eleição porque o PT se dividiu e apresentou um candidato dissidente,
Virgílio Guimarães (PT-MG), no mesmo pleito. Severino, com 124 votos, e
Virgílio, com 117, tinham sido derrotados no primeiro turno pelo candidato
oficial do PT, Luiz Eduardo Greenhalgh, que tivera 207 votos. No segundo turno,
Severino bateu Greenhalgh por 300 a 195 votos. |-->Virgílio foi o homem que apresentou
Marcos Valério, mineiro de Curvelo como ele e diretor financeiro das empresas
de publicidade DNA e SMP&B, a Delúbio Soares, o tesoureiro do PT, a quem
Valério ajudou na tarefa de obter dinheiro para o partido.
|-->Na nossa história, a candidatura de Virgílio contra o candidato
oficial do seu partido serve para ressaltar o fato conhecido de que o PT é
formado por várias correntes. O grande apoio a Severino e a baixa votação de
Greenhalgh no segundo turno mostram ainda que a já então chamada base aliada
estava longe de ser petista. A vitória de Severino, a rigor, foi o fato que
puxou o enredo da trama política para um lado: contra o PT e a favor da
invenção do “mensalão”. No caso da Câmara, ajudou a criar a historinha contra o
ex-presidente da casa. Da assessoria do pernambucano emerge Alexis Souza, o
operador na produção do principal documento usado por Barbosa na condenação de
Cunha e dos dirigentes da agência SMP&B.
Alexis é um
funcionário da Câmara ligado ao PP. Com Severino na presidência, Alexis foi
para a chefia da Secretaria de Controle Interno (Secin) da Câmara. Quando
Severino renunciou à presidência, sete meses depois, Alexis tornou-se assessor
da bancada de deputados do PP. Até meados de fevereiro estava no gabinete da
vice-presidência da Câmara, ocupada pelo deputado Eduardo da Fonte, também do
PP de Pernambuco, como Severino. Foi lá que Alexis conversou com RB no início
de fevereiro. Pouco antes, o repórter desta história tinha revisto, no YouTube,
a condenação de Cunha por Barbosa e citou para Alexis o fato de o ministro ter
destacado o seu documento na condenação. Aparentemente, Alexis ficou orgulhoso
com o reconhecimento, mas pediu para que não fossem registradas as avaliações
que fez inicialmente sobre a natureza política do “mensalão”. Sua presença se
destaca na história contada a seguir primeiro pelo relatório e depois por seus
depoimentos nos autos da grande investigação feita pela Câmara dos Deputados a respeito do contrato SMP&B-Câmara
assinado em dezembro de 2003.
A investigação começou com um pedido formal do deputado Cunha a
Severino: que a Câmara oficiasse ao Tribunal de Contas da União para ser feita
uma investigação do contrato. O pedido foi feito a 7 de julho de 2005, logo que
Cunha foi apontado como receptor de dinheiro do chamado valerioduto e surgiu a
tese de que isso fora uma propina para ele aprovar o contrato com a SMP&B.
Severino não só encaminhou o pedido ao TCU como deu ordem a Alexis, segundo o
próprio repete em seus depoimentos, para realizar uma investigação sobre o
caso. E o chefe da Secin a fez, de imediato. |-->Quando, de 25 de julho a 3 de
agosto de 2005, o TCU mandou uma equipe da sua Terceira Secretaria de Controle
Externo (3ª Secex) à Câmara para uma investigação inicial, Alexis repassou a
essa equipe as conclusões a que tinha chegado. O trabalho da 3ª Secex seguiu em
frente e foi desembocar no acórdão 430 do TCU, de 2008, que absolve Cunha e a
SMP&B. Esse acórdão é o mesmo torpedeado pela diatribe de Barbosa citada no
início deste artigo. A investigação e as conclusões do TCU serão examinadas no
segundo capítulo de nossa história. Por enquanto, se descreverá a investigação
da Câmara, que começa com o relatório de Alexis e é a que o repórter considera
mais importante.
|-->O relatório final dessa investigação é de 26 de fevereiro de 2010
e está ao final do oitavo volume de um conjunto de 1.929 páginas. Basicamente,
ela se desenvolve em três etapas: 1) a iniciada com o pedido de Cunha, a 7 de
julho de 2005, e comandada por Alexis, que produz dois relatórios: um dois
meses depois, em setembro, e outro, a seguir, em outubro; 2) a conduzida pelo
Núcleo Jurídico da administração da Câmara, entre o final de 2005 e meados de
2006; 3) e a que se passa daí em diante, conduzida por uma Comissão de
Sindicância (CS) criada pela direção administrativa da Câmara na época em que
era presidente da Casa o deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP). Como as comissões de
sindicância só podem, pelo estatuto da Câmara, funcionar por 30 dias, prorrogáveis
por mais 30, a rigor foram nomeadas oito dessas comissões, sempre com o mesmo
presidente e praticamente com os mesmos funcionários, o que permite
considerá-las uma só.
Nas suas conclusões finais, a CS diz que sua investigação consumiu
480 dias de trabalho, descontados os 1.115 dias nos quais os autos tramitaram
entre os diversos órgãos interessados, que são: a Comissão de Ética e Decoro
Parlamentar da Câmara, na qual Cunha foi julgado e absolvido; a Comissão
Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Correios, cujo relatório foi
publicado no início de 2006 e enviado à Procuradoria-Geral da República (PGR);
a Polícia Legislativa da Câmara, que fez inquéritos sobre a denúncia de crimes
que teriam sido cometidos na apresentação de propostas e na execução dos
contratos; a Procuradoria-Geral da República, que apresentou a denúncia contra
Cunha e outras 39 pessoas do grupo dos chamados “mensaleiros” ao Supremo
Tribunal Federal, logo depois do relatório da CPMI; e, finalmente, o próprio
STF, por meio do ministro Joaquim Barbosa, que presidiu o inquérito da PGR e,
após a aceitação da denúncia pela corte suprema, tornou-se o relator da AP 470.
Não existe a menor dúvida de que a CS foi criada para ajudar a
esclarecer a denúncia básica do “mensalão”: a de que o PT usara dinheiro
público para realizar seu projeto político pela compra de voto dos
parlamentares. E, a esse respeito, também não existe a menor dúvida nas quase 2
mil páginas dos autos: o contrato da Câmara com a SMP&B foi absolutamente
legal, os pagamentos à agência estavam de acordo com os termos contratados e
todos os trabalhos previstos nele foram realizados.
Não é o que disse e repete Alexis. A primeira
parte do seu relatório, entregue a 28 de setembro de 2005, condena completamente
a licitação feita durante a gestão de Cunha. Ela não teria um objeto bem
definido, não incluiria um indispensável parcelamento de tarefas e teria a
participação de empresas com sinais de conluio entre si.
Nenhum comentário:
Postar um comentário