Zizek:
Pensar o atentado ao Charlie Hebdo
ÚQuem não estiver disposto a falar criticamente sobre a democracia
liberal deve também se calar sobre o fundamentalismo religioso.ç
Slavoj
Zize - Blog da Boitempo // 13/01/2015
ÚÉ agora — quando estamos todos em estado de choque
depois da carnificina na sede do Charlie Hebdo — o momento certo para encontrar coragem para pensar. Agora, e não depois,
quando as coisas acalmarem, como tentam nos convencer os proponentes da
sabedoria barata: o difícil é justamente combinar
o calor do momento com o ato de pensar. Pensar quando
o rescaldo dos eventos esfriar não gera uma verdade mais balanceada,
ela na verdade normaliza a situação de forma a nos permitir evitar as verdades
mais afiadas. [ele admite discutir no calor das
ocorrências]
Pensar significa ir adiante do pathos da
solidariedade universal que explodiu nos dias que sucederam o evento e
culminaram no espetáculo de domingo, 11 de janeiro de 2015, com grandes
nomes políticos ao redor do globo de mãos dadas, de Cameron a Lavrov, de
Netanyahu a Abbas – talvez a imagem mais bem acabada da falsidade
hipócrita. O
verdadeiro gesto Charlie Hebdo seria ter publicado na capa do semanário
uma grande caricatura brutalmente e grosseiramente tirando sarro desse evento,
com cartuns de Netanyahu e Abbas, Lavrov e Cameron, e outros casais
se abraçando e beijando intensamente enquanto afiam facas por
trás de suas costas.
Devemos, é claro, condenar sem ambiguidade os homicídios como um ataque contra a essência de nossas liberdades, e condená-los sem nenhuma ressalva oculta (como quem diria “Charlie Hebdo estava, todavia, provocando e humilhando os muçulmanos demais da conta”). Devemos também rejeitar toda abordagem calcada no efeito mitigante do apelo ao “contexto mais amplo”: algo como “os irmãos terroristas eram profundamente afetados pelos horrores da ocupação estadunidense do Iraque” (OK, mas então por que não simplesmente atacaram alguma instalação militar norte-americana ao invés de um semanário satírico francês?), ou como “muçulmanos são de fato uma minoria explorada e escassamente tolerada” (OK, mas negros afro-descendentes são tudo isso e mais e, no entanto, não praticam atentados a bomba ou chacinas) etc. O problema com tal evocação da complexidade do pano de fundo é que ele pode muito bem ser usado a propósito de Hitler: ele também coordenou uma mobilização diante da injustiça do tratado de Versalhes, mas no entanto era completamente justificável combater o regime nazista com todos os meios à nossa disposição. A questão não é se os antecedentes, agravos e ressentimentos que condicionam atos terroristas são verdadeiros ou não, o importante é o projeto político-ideológico que emerge como reação contra injustiças.
Devemos, é claro, condenar sem ambiguidade os homicídios como um ataque contra a essência de nossas liberdades, e condená-los sem nenhuma ressalva oculta (como quem diria “Charlie Hebdo estava, todavia, provocando e humilhando os muçulmanos demais da conta”). Devemos também rejeitar toda abordagem calcada no efeito mitigante do apelo ao “contexto mais amplo”: algo como “os irmãos terroristas eram profundamente afetados pelos horrores da ocupação estadunidense do Iraque” (OK, mas então por que não simplesmente atacaram alguma instalação militar norte-americana ao invés de um semanário satírico francês?), ou como “muçulmanos são de fato uma minoria explorada e escassamente tolerada” (OK, mas negros afro-descendentes são tudo isso e mais e, no entanto, não praticam atentados a bomba ou chacinas) etc. O problema com tal evocação da complexidade do pano de fundo é que ele pode muito bem ser usado a propósito de Hitler: ele também coordenou uma mobilização diante da injustiça do tratado de Versalhes, mas no entanto era completamente justificável combater o regime nazista com todos os meios à nossa disposição. A questão não é se os antecedentes, agravos e ressentimentos que condicionam atos terroristas são verdadeiros ou não, o importante é o projeto político-ideológico que emerge como reação contra injustiças.
Nada
disso é suficiente – temos que pensar adiante. E o pensar de que
falo não tem absolutamente nada a ver com uma relativização fácil do crime (o mantra do “quem
somos nós ocidentais, que cometemos massacres terríveis no terceiro mundo, para
condenar atos como estes?”). E tem menos ainda a ver com o medo
patológico de tantos esquerdistas liberais ocidentais de sentirem-se
culpados de islamofobia. Para
estes falsos esquerdistas, qualquer crítica ao Islã é rechaçada como expressão
da islamofobia ocidental: Salman Rushdie foi acusado de ter provocado
desnecessariamente os muçulmanos, e é, portanto, responsável (ao menos em
parte) pelo fatwa que o condenou à morte etc.
O resultado de tal postura só pode ser esse: o quanto mais
os esquerdistas liberais ocidentais mergulham em seu sentimento de culpa, mais
são acusados por fundamentalistas muçulmanos de serem hipócritas tentando
ocultar seu ódio ao Islã. Esta constelação perfeitamente reproduz o paradoxo do
superego: quanto
mais você obedece o que o
outro exige de você, mais culpa sentirá. É como se o
quanto mais você tolerar o Islã, tanto mais forte será sua pressão em você…
É
por isso que também me parecem insuficientes os pedidos
de moderação que surgiram na linha da alegação de Simon Jenkins (no The Guardian de
7 de janeiro) de que nossa tarefa seria
a de “não exagerar a reação, não sobre-publicizar o impacto
do acontecimento. É tratar cada evento como um acidente passageiro do
horror”
– o atentado ao Charlie
Hebdo não foi um mero “acidente
passageiro do horror”. Ele seguiu uma agenda religiosa e política precisa e foi
como tal claramente parte de um padrão muito mais amplo. É claro que não devemos
nos exaltar – se por isso compreendermos não sucumbir à islamofobia cega – mas devemos implacavelmente analisar
este padrão.
O que é muito mais necessário que a
demonização dos terroristas como fanáticos suicidas heroicos é um
desmascaramento desse mito demoníaco. Muito tempo atrás, Friedrich Nietzsche percebeu
como a civilização ocidental estava se movendo na direção do “último homem”,
uma criatura apática com nenhuma grande paixão ou comprometimento. Incapaz de sonhar,
cansado da vida, ele não assume nenhum risco, buscando apenas o conforto e a
segurança, uma expressão de tolerância com os outros: “Um pouquinho de
veneno de tempos em tempos: que garante sonhos agradáveis. E muito veneno no
final, para uma morte agradável. Eles têm seus pequenos prazeres de dia, e seus
pequenos prazeres de noite, mas têm um zelo pela saúde. ‘Descobrimos a felicidade,’
dizem os últimos homens, e piscam.”
aLFIO bOGDAN - Físico e Professor
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