quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

SOBRE O OCORRIDO NA FRANÇA DE HOLLANDE

Zizek: Pensar o atentado ao Charlie Hebdo

ÚQuem não estiver disposto a falar criticamente sobre a democracia liberal deve também se calar sobre o fundamentalismo religioso.ç

Slavoj Zize - Blog da Boitempo // 13/01/2015


ÚÉ agora — quando estamos todos em estado de choque depois da carnificina na sede do Charlie Hebdo — o momento certo para encontrar coragem para pensarAgora, e não depois, quando as coisas acalmarem, como tentam nos convencer os proponentes da sabedoria barata: o difícil é justamente combinar o calor do momento com o ato de pensar. Pensar quando o rescaldo dos eventos esfriar não gera uma verdade mais balanceada, ela na verdade normaliza a situação de forma a nos permitir evitar as verdades mais afiadas. [ele admite discutir no calor das ocorrências]
Pensar significa ir adiante do pathos da solidariedade universal que explodiu nos dias que sucederam o evento e culminaram no espetáculo de domingo, 11 de janeiro de 2015, com grandes nomes políticos ao redor do globo de mãos dadas, de Cameron a Lavrov, de Netanyahu a Abbas – talvez a imagem mais bem acabada da falsidade hipócrita. O verdadeiro gesto Charlie Hebdo seria ter publicado na capa do semanário uma grande caricatura brutalmente e grosseiramente tirando sarro desse evento, com cartuns de Netanyahu e Abbas, Lavrov e Cameron, e outros casais se abraçando e beijando intensamente enquanto afiam facas por trás de suas costas.  
Devemos, é claro, condenar sem ambiguidade os homicídios como um ataque contra a essência de nossas liberdades, e condená-los sem nenhuma ressalva oculta (como quem diria “Charlie Hebdo estava, todavia, provocando e humilhando os muçulmanos demais da conta”). Devemos também rejeitar toda abordagem calcada no efeito mitigante do apelo ao “contexto mais amplo”: algo como “os irmãos terroristas eram profundamente afetados pelos horrores da ocupação estadunidense do Iraque” (OK, mas então por que não simplesmente atacaram alguma instalação militar norte-americana ao invés de um semanário satírico francês?), ou como “muçulmanos são de fato uma minoria explorada e escassamente tolerada” (OK, mas negros afro-descendentes são tudo isso e mais e, no entanto, não praticam atentados a bomba ou chacinas) etc. O problema com tal evocação da complexidade do pano de fundo é que ele pode muito bem ser usado a propósito de Hitler: ele também coordenou uma mobilização diante da injustiça do tratado de Versalhes, mas no entanto era completamente justificável combater o regime nazista com todos os meios à nossa disposição. A questão não é se os antecedentes, agravos e ressentimentos que condicionam atos terroristas são verdadeiros ou não, o importante é o projeto político-ideológico que emerge como reação contra injustiças.
––Nada disso é suficiente – temos que pensar adiante. E o pensar de que falo não tem absolutamente nada a ver com uma relativização fácil do crime (o mantra doquem somos nós ocidentais, que cometemos massacres terríveis no terceiro mundo, para condenar atos como estes?”). E tem menos ainda a ver com o medo patológico de tantos esquerdistas liberais ocidentais de sentirem-se culpados de islamofobia. Para estes falsos esquerdistas, qualquer crítica ao Islã é rechaçada como expressão da islamofobia ocidental: Salman Rushdie foi acusado de ter provocado desnecessariamente os muçulmanos, e é, portanto, responsável (ao menos em parte) pelo fatwa que o condenou à morte etc.
O resultado de tal postura só pode ser esse: o quanto mais os esquerdistas liberais ocidentais mergulham em seu sentimento de culpa, mais são acusados por fundamentalistas muçulmanos de serem hipócritas tentando ocultar seu ódio ao Islã. Esta constelação perfeitamente reproduz o paradoxo do superego: quanto mais você obedece o que o outro exige de você, mais culpa sentirá. É como se o quanto mais você tolerar o Islã, tanto mais forte será sua pressão em você…
–––É por isso que também me parecem insuficientes os pedidos de moderação que surgiram na linha da alegação de Simon Jenkins (no The Guardian de 7 de janeiro) de que nossa tarefa seria a de  “não exagerar a reação, não sobre-publicizar o impacto do acontecimento. É tratar cada evento como um acidente passageiro do horroro atentado ao Charlie Hebdo não foi um mero “acidente passageiro do horror”. Ele seguiu uma agenda religiosa e política precisa e foi como tal claramente parte de um padrão muito mais amplo. É claro que não devemos nos exaltar – se por isso compreendermos não sucumbir à islamofobia cega – mas devemos implacavelmente analisar este padrão.

O que é muito mais necessário que a demonização dos terroristas como fanáticos suicidas heroicos é um desmascaramento desse mito demoníaco. Muito tempo atrás, Friedrich Nietzsche percebeu como a civilização ocidental estava se movendo na direção do “último homem”, uma criatura apática com nenhuma grande paixão ou comprometimento. Incapaz de sonhar, cansado da vida, ele não assume nenhum risco, buscando apenas o conforto e a segurança, uma expressão de tolerância com os outros: Um pouquinho de veneno de tempos em tempos: que garante sonhos agradáveis. E muito veneno no final, para uma morte agradável. Eles têm seus pequenos prazeres de dia, e seus pequenos prazeres de noite, mas têm um zelo pela saúde. ‘Descobrimos a felicidade,’ dizem os últimos homens, e piscam.
aLFIO bOGDAN - Físico e Professor

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