Marinho, Frias e o Mr. Dops
Por Altamiro Borges
Em mais uma de suas excelentes
reportagens, a jornalista Marina Amaral entrevista por mais de 15 horas José
Paulo Bonchristiano, um dos poucos delegados ainda vivos do famigerado
Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Ele evita falar sobre as
torturas e mortes nos porões da ditadura militar, mas ainda hoje se jacta dos
serviços de espionagem prestados pelo órgão.
Num dos trechos da entrevista,
Bonchristiano confirma a íntima relação dos aparelhos de repressão com os
barões da mídia. Sobre Roberto Marinho, o falecido dono do império Globo,
afirma que ele "passava no DOPS para conversar com a gente quando estava
em São Paulo”. Sobre Octávio Frias, o falecido chefão da Grupo Folha, relata que
telefonava para ele “para pedir o que o DOPS precisasse”.
*****
Aos 80
anos, José Paulo Bonchristiano conserva o porte imponente dos tempos em que era
o “doutor Paulo”, delegado do Departamento de Ordem Política e Social de São
Paulo, “o melhor departamento de polícia da América Latina”, não se cansa de
repetir. “O DOPS era um órgão de inteligência policial, fazíamos o levantamento
de todo e qualquer cidadão que tivesse alguma coisa contra o governo, chegamos
a ter fichas de 200 mil pessoas durante a revolução”, diz, referindo-se ao
golpe militar de 1964, que deu origem aos 20 anos de ditadura no Brasil.
Os
arquivos do DOPS se tornaram públicos em 1992, mas muitos documentos foram
retirados pelos policiais quando estavam sob a guarda do então diretor da
Polícia Federal e ex-diretor geral do DOPS, Romeu Tuma. Entre os remanescentes
estão os laudos periciais falsos, produzidos no próprio DOPS, que transformavam
homicídios cometidos pelos agentes do Estado em suicídios, atropelamentos,
fugas. No caso dos desaparecidos, os corpos eram enterrados sob nomes falsos em
valas de indigentes em cemitérios de periferia.
Globo,
Folha, Bradesco – e Niles Bond
“Eu
fazia a escolta dele e ele me chamava para tomar um suco de laranja ou comer um
sanduíche misto na padaria Miami, na rua Tutóia, vizinha ao quartel do II
Exército. Todo mundo querendo saber onde estava o presidente da República, e eu
ali”, delicia-se.
Gaba-se
de ter sido enviado para “cursos de treinamento em Langley” nos Estados Unidos,
pelo cônsul geral em São Paulo, Niles Bond, que admirava a “eficiência” da
polícia política paulista. E o chamava de “Mr. Dops”.
“Polícia
é polícia, bandido é bandido”, diz Bonchristiano. “Para vocês de fora é
diferente, mas para nós, acabar com marginal é uma coisa positiva. O meu colega
Fleury merecia um busto em praça pública”, afirma, sem corar.
O
delegado Sérgio Fleury e sua turma de investigadores se celebrizaram por caçar,
torturar e matar presos políticos no DOPS, enquanto continuavam a exterminar
suspeitos de crimes comuns no Esquadrão da Morte.
Conversas
gravadas
No
decorrer de nove tardes passadas, entre junho de 2010 e janeiro deste ano, em
seu apartamento no Brooklin, no 13º andar de um prédio de classe média alta,
aprendi a escutar com paciência os “causos” que “doutor Paulo” narra com humor
feroz, até extrair informações relevantes. Repetidas vezes eu as confrontava
com livros e documentos e voltava a inquiri-lo; a proposta era que ele se
responsabilizasse pelo que dizia.
De
certo modo, meu embate com o “doutor Paulo” antecipava as dificuldades que
serão enfrentadas pela Comissão da Verdade, a ser instalada em abril para
apurar fatos e responsáveis – sem punição penal prevista – pelas violações de
direitos humanos cometidas pelo Estado entre 1946 e 1988, abrangendo o período
da ditadura militar. O objetivo da comissão é devolver aos cidadãos brasileiros
um passado que ainda não se encerrou, como provam os desaparecidos, e impedir
que funcionários públicos sigam mantendo segredo sobre atos praticados a mando
do Estado.
A
fragilidade da lei em pontos cruciais, porém, provoca ceticismo nas
organizações de direitos humanos, em especial ao permitir o sigilo de
depoimentos – ferindo o direito à transparência pública –, e ao não prever
punições aos responsáveis pelos crimes, nem mesmo medidas coercitivas para os
que se recusarem a depor.
“Não
vou depor. Acho bobagem”, diz Bonchristiano. “Nunca pratiquei irregularidades,
mas não sou dedo duro e não vejo utilidade nessa comissão”, justifica o
funcionário público, aposentado aos 53 anos, e que recebe hoje 11 mil reais por
mês de pensão.
Minhas
conversas com Mr. DOPS renderam 15 horas de gravação que revelam a mentalidade
e as conexões políticas dos policiais que atuaram na repressão do governo
militar. E provam que os detentores das informações estão por aí – embora continuem
ocultando as circunstâncias exatas em que os crimes foram cometidos e os
mandantes de cada um deles.
Torturadores
e repressores
O nome
de Bonchristiano – que significa “bom cristão” e veio de Salerno, Itália – não
consta das principais listas de torturadores compiladas por organizações de
direitos humanos.
O
Projeto Brasil Nunca Mais, um extenso levantamento realizado clandestinamente
entre 1979 e 1985 com base nos IPMs (inquéritos policiais militares), é até
hoje a principal referência, embora muitas vezes liste apenas os “nomes de
guerra” dos torturadores, já que os reais eram desconhecidos das vítimas.
No tomo
II, volume 3, “Os funcionários”, Paulo Bonchristiano é citado oito vezes em
operações de repressão. Mas seu nome também não consta da chamada Lista de
Prestes, de 1978, liberada recentemente pela viúva do líder comunista, que traz
vários nomes completos e os cargos de 233 torturadores denunciados por presos
políticos – entre eles 58 policiais do DOPS de São Paulo, 21 deles delegados.
As
lacunas dessa história, porém, não permitem descartar a revelação de novos
nomes. Entre 1968 e 1976 – o período mais duro da ditadura –, as torturas
faziam parte do cotidiano de todos os policiais e militares envolvidos na
repressão. O DOPS era “manejado pelos militares como um órgão federal”, como
observa o jornalista Percival de Souza no livro “Autópsia do Medo”, do qual o
Paulo Bonchristiano participa como fonte e personagem, qualificado como “um dos
delegados mais conhecidos do DOPS”.
Nas
entrevistas à Pública, o ex-delegado resistiu duas tardes inteiras antes de
admitir que se torturava e matava no “melhor departamento de polícia da América
Latina” – o que hoje qualquer cidadão pode constatar através dos depoimentos
reunidos no “Memorial da Resistência”, museu que desde 2002 ocupa as antigas
instalações do DOPS, no centro de São Paulo.
Nem
mesmo o fato de Sérgio Fleury ter se celebrizado como torturador impediu
Bonchristiano de tentar isentar o órgão: “O Fleury era do DOPS e não era do
DOPS, era o homem de ligação do DOPS com os militares, era delegado das Forças
Armadas, do Alto Comando. Não obedecia a ninguém, interrogava presos no DOPS,
no DOI-CODI, em delegacias, sítios, no país inteiro. Todo o segundo andar do
DOPS era dele, tinha que telefonar antes: ‘Fleury eu vou descer pra falar com
você’. Se não, a gente não entrava. Ele tinha uma porta lá, todo misterioso”.
Bonchristiano
ainda se lembra, e muito bem, das antigas desavenças com o ex-colega.
“O
Fleury estava em todas, se metia em tudo, perdi muitos ‘tiras’ para ele porque
lá eles ganhavam mais, tinha um ‘por fora’”, contou na segunda entrevista. “Uma
vez prendi um cara em um aparelho no Tremembé, e quando estava chegando no
DOPS, o Fleury pediu o preso emprestado, não lembro o nome dele. Depois de dois
dias sem notícias do preso, fui perguntar para o Fleury, e ele me pediu
desculpas, tinha matado o cara que eu nem ouvi”, relata, como se fosse um
contratempo na repartição. “Chegou uma hora que só ele que dominava. Só se
falava dele”.
“Graças
a Deus só se fala no Fleury”, reagiu dona Vera, a elegante senhora com quem o
ex-delegado é casado há 53 anos, que entrava na sala trazendo refrigerantes. E
emendou: “Zé Paulo, essa entrevista já não está durando demais?”, frase que ela
repetiria muitas vezes depois.
Foi na
terceira entrevista – quando já acumulávamos seis horas de gravação – que o
“doutor Paulo”, sem dona Vera na sala, finalmente confirmou que “sabia de tudo”
o que acontecia no DOPS. E se “justificou”: “Eu não podia fazer nada, isso era
com o pessoal de lá de cima. Eu era delegado de segunda classe, respondia
apenas ao diretor do DOPS, o resto era com eles”.
Bonchristiano
tornou-se delegado de 2ª classe em 1969 e foi promovido “por merecimento” a
delegado de 1ª classe em 1971.
Naquele
mesmo dia, admitiu que frequentava os outros centros de tortura montados em São
Paulo a partir de 1969, como a OBAN (Operação Bandeirante) e o DOI-CODI,
comandados pelo Exército e compostos de policiais civis e militares instruídos
a torturar. Só no período de 1970 a 1974, a Arquidiocese de São Paulo reuniu
502 denúncias de tortura no DOI-CODI paulista, apelidado jocosamente pelos
policiais de “Casa da Vovó”.
Bonchristiano
disse então que “alguns da diretoria do DOPS” participaram da montagem da OBAN
– “os militares não entendiam nada de polícia, depois aprenderam” – e que
cederam três delegados no início das operações, todos incluídos entre os
torturadores na Lista de Prestes: Otávio Medeiros, ligado ao CCC (Comando de
Caça aos Comunistas) e à TFP (Tradição, Família e Propriedade), assassinado em
1973 por militantes da resistência armada; Renato d’Andrea, colega de
Bonchristiano na Faculdade de Direito da PUC; e Raul Nogueira de Lima, o Raul
Careca, ex-investigador subordinado a Bonchristiano e ligado ao CCC, que se
tornaria delegado depois.
Levaram
também os métodos da polícia, incluindo o pau-de-arara – na origem um cabo de
vassoura apoiado em duas mesas, onde os policiais deixavam o preso pendurado
por pulsos e tornozelos até que a dor insuportável os fizesse “confessar”.
“O
pau-de-arara não é, assim, uma tortura, vai tensionando os músculos, se o cara
falar logo não fica nem marca, mas se o cara for macho e segurar…”, explicou-me
ele certa vez. Diante de minha expressão escandalizada, concedeu: “choques,
sim, dependendo”. E completou: “Naquela época foi diferente, o governo estava
tentando melhorar o país. Aí nós tivemos que fazer essa luta. Nunca considerei
os comunistas bandidos, considerava ideologicamente inimigos. Tanto que eu
sempre falei, não poderia haver mortes”.
Bonchristiano
disse que frequentava a OBAN e o DOI-CODI para “buscar presos, não para levar”,
buscando distanciar-se das mal afamadas equipes de captura da OBAN, que
realizavam prisões ilegais. Alguns eram soltos sem que sua passagem nos órgãos
policiais fosse sequer registrada; outros eram enviados para os cárceres do
DOPS, onde assinavam as “confissões” e tinham a “prisão preventiva” decretada.
“Maçã
Dourada”, os paramilitares e o DOPS
Em seus
primeiros anos no DOPS, Bonchristiano se especializou em infiltrações em
movimentos sindicais, mas a partir de 1968 os estudantes se tornaram
prioridade. “Quem faz revolução é estudante, operário faz revolução na Rússia”,
costumava dizer.
Uma das
operações das quais mais se orgulha, que o levou às páginas de revistas e
jornais, foi o desmantelamento do Congresso da União Nacional dos Estudantes em
Ibiúna, em 12 de outubro de 1968, comandado por ele. “Prendi 1263 estudantes
sem disparar um tiro”, diz – embora os policiais do DOPS e da Força Pública de
Sorocaba tenham comprovadamente anunciado sua chegada com rajadas de
metralhadora para o ar. “Coloquei a garotada em 100 ônibus cedidos pela
(viação) Cometa e levei todo mundo para o DOPS. Separei os líderes e liberei o
resto para ir para casa. Não tínhamos vontade de matá-los, eram estudantes”,
ironiza.
Entre
os 11 líderes que Bonchristiano mandou para o Forte de Itaipu, em Santos, estão
os ex-ministros Franklin Martins e José Dirceu, e o líder estudantil Luiz
Travassos, já falecido.
“Eu
sabia tudo o que o Dirceu fazia porque ele era metido a galã e eu coloquei uma
agente nossa para seduzi-lo”, gaba-se o delegado. “Ela era muito bonita, a Maçã
Dourada, e me contava todos os passos dele”, diz o delegado. A “estudante”
Heloísa Helena Magalhães, uma das 40 moças contratadas pelo DOPS para esse tipo
de serviço, segundo ele, chegou a ser secretária de Dirceu na UNE.
Dias
antes, havia acontecido o famoso embate entre estudantes de direita reunidos no
Mackenzie e estudantes da Faculdade de Filosofia da USP, na rua Maria Antonia,
base de resistência contra a ditadura. Pelo lado da direita, os conflitos foram
publicamente liderados por João Marcos Flaquer, fundador do CCC, organização
paramilitar idealizada por Luís Antonio Gama e Silva, o jurista que redigiu o
AI-5 após se afastar da reitoria da USP para assumir o Ministério da Justiça de
Costa e Silva.
Flaquer
não era do Mackenzie – estava no último ano de Direito na USP – e dividia o
comando dos combates com Raul Nogueira de Lima, o Raul Careca, “tira” do DOPS,
subordinado a Bonchristiano. Oficialmente, a polícia só entrou no campus no
segundo dia de conflitos, depois que um tiro, atribuído a um membro do CCC,
Ricardo Osni, atingiu um estudante secundarista. Mas, segundo Bonchristiano,
havia outras forças por trás dos conflitos:
“Foi o
João Marcos que fundou o CCC e salvou os estudantes de passarem todos para o
comunismo, por isso os americanos também gostavam dele”, diz o ex-delegado.
“Ele tinha uma capacidade fabulosa, era forte demais, um cara fora de série,
muito meu amigo. Eu o conhecia desde o segundo ano da faculdade, ele queria ser
delegado mas a família dele era muito rica e não o queria metido com polícia,
então ele vinha para o DOPS comigo. Ele dirigia toda essa parte de estudantes,
infiltrava gente entre os esquerdistas. Se tinha alguma coisa que interessava
ao DOPS, ele fazia. Mas só com minha anuência”, gaba-se o ex-delegado, que diz
participado do planejamento do conflito.
O CCC
começou com cerca de 400 membros e chegou a reunir 5 mil homens – boa parte
deles militares e policiais. Andavam armados, espancavam estudantes e artistas
que se opunham à ditadura e seus atentados mataram pelo menos duas pessoas.
João
Marcos Flaquer, Ricardo Osni, João Parisi Filho e José Parisi, “estudantes” do
CCC, eram colaboradores do DOI-CODI e constam da lista de torturadores do
Brasil Nunca Mais.
Os dois
primeiros, bem como o mentor Gama e Silva, também participavam de encontros que
reuniam policiais da CIA e do DOPS. “A especialidade da CIA era fomentar
organizações paramilitares como o CCC. Acho bem possível que eles recebessem,
além de apoio, dinheiro”, diz a socióloga Martha Huggins, da Tulane University,
New Orleans, pesquisadora de programas de treinamento de policiais estrangeiros
pela CIA.
Afinidades
eletivas: o DOPS e a CIA
Bacharel
de Direito pela PUC-SP, filho de uma farmacêutica e um bancário, José Paulo
Bonchristiano não entrou na polícia política por acaso. Ele e a turma de amigos
da faculdade – seis deles futuros delegados do DOPS – eram anticomunistas
viscerais e católicos conservadores, e representavam a direita no centro
acadêmico 22 de agosto.
Esse
perfil agradava ao experiente delegado Benedito de Carvalho Veras, que os
recrutou em 1957 quando cursavam o último ano de Direito e faziam estágio na
polícia. Veras, que se tornaria secretário de segurança do governador Jânio
Quadros no ano seguinte, estava à procura de quadros para modernizar a polícia,
sob orientação do Programa do Ponto IV – idealizado pelo presidente americano,
Harry Truman, com o objetivo de prevenir a “infiltração comunista”. Isso se
traduzia na combinação de ajuda econômica e treinamento das forças policiais
dos países da região.
A
intenção era “profissionalizar” a polícia brasileira – sobretudo os que lidavam
com crimes políticos e sociais – para que barrassem o comunismo sob qualquer
governo.
No
mesmo ano em que Veras assumia a secretaria de segurança e nomeava
Bonchristiano como delegado substituto de polícia, uma deputada (Conceição da
Costa Neves, do PTB, que fazia oposição ao então governador Jânio Quadros)
denunciava publicamente ter sido vítima de um grampo telefônico. “Foi o
primeiro grampo que se tem notícia em São Paulo”, conta o ex-delegado, que
conheceu de perto o autor da “inovação tecnológica”, o escrivão Armando Gomide,
futuro agente do o Serviço Nacional de Informações (SNI). Gomide havia aprendido
o “grampo” com os instrutores do Ponto IV, que também forneceram equipamentos
para melhorar a qualidade das gravações.
Em
1962, o programa passou a ser dirigido pelo OPS – Office of Public Safety – uma
“célula da CIA incrustrada dentro da AID (Agency for International Development,
no Brasil, mais conhecida como USAID)”, nas palavras da professora Martha
Huggins.
Além de
treinar 100 mil policiais no Brasil, a OPS-CIA selecionava policiais e oficiais
militares para estudar em suas escolas no Panamá (1962-1964); e nos Estados
Unidos, depois que a Academia Internacional de Polícia (IPA) foi inaugurada em
1963 em Washington, funcionando até 1975. No Brasil, o OPS ficou até 1972,
quando o Congresso americano começou a investigar as denúncias de que o programa
patrocinava aulas de tortura.
A IPA
foi um das “escolas” nos Estados Unidos que recebeu Bonchristiano antes mesmo
do golpe militar. Dois anos antes – logo depois de ser aprovado no concurso
para delegado de 5ª classe, o início da carreira, ele já frequentava a casa do
diretor DOPS Ribeiro de Andrade, no Jardim Lusitânia, em São Paulo. “Ele estava
sempre de portas abertas para nós, ficávamos lá conspirando”, ironiza.
Foi ali
que Bonchristiano conheceu o policial americano Peter Costello, que veio para o
Brasil em 1962 como instrutor da OPS depois de treinar 2.500 homens em técnicas
de controle de distúrbios na Coréia. “Era um sujeito austero, falava português
e entendia de polícia, deu curso de algemas, tiro rápido e outros para os
policiais do DOPS, conta, completando: “Alguns meninos do CCC também
participaram”.
Antes
de 1964 os delegados do DOPS já contavam com a ajuda dos americanos para
identificar os “comunistas”, muitos deles presos logo depois do golpe. “A ordem
que a gente tinha desde o começo era identificar e prender todos os comunistas.
Queríamos acabar com o Partido Comunista”, diz Bonchristiano.
Para
contribuir com essa missão, “o Ponto IV nos contemplou com fotografias dos
frequentadores (brasileiros) dos cursos de guerrilha na China”, relatou Renato
d’Andrea, um dos delegados que foram da turma de Bonchristiano na PUC, ao
jornalista Percival de Souza.
Na
primeira operação importante que Bonchristiano realizou no DOPS, em abril de
1964, foi a vez de retribuir, entregando aos americanos as 19 cadernetas
apreendidas na casa do líder comunista Luiz Carlos Prestes. As cadernetas foram
xerocadas nos Estados Unidos (aqui ainda não existia o xerox) e retornaram 15
dias depois para o Brasil, servindo de base para a prisão de diversos
militantes comunistas.
Só
sobraram as cópias das cadernetas de Prestes, hoje nos arquivos do DOPS – os
originais, segundo o “doutor” Paulo, desapareceram. Por aqui as cadernetas
serviram de base a um dos maiores IPMs da primeira fase da ditadura, e foram
usadas como justificativa para a prisão de diversos militantes comunistas como
Carlos Marighella, que o próprio Bonchristiano foi encarregado de conduzir a
São Paulo, depois que ele havia sido preso e baleado em um cinema no Rio, em
1964. Solto em 1965, Marighella foi assassinado em uma emboscada de policiais
do DOPS em 1969.
“É uma
bobagem danada dizer que a CIA mandava no DOPS, que nós éramos agentes da CIA,
não era nada disso, nós éramos delegados do DOPS”, resmunga o doutor Paulo. “A
América do Sul sempre foi o quintal dos Estados Unidos, e eles olhavam muito
para nós, tinham medo do Brasil se tornar comunista. E notaram que tinha um
departamento de polícia em São Paulo que trabalhava firme nisso. Porque o DOPS
de São Paulo fazia todos os levantamentos que conduzissem a algum elemento do
Partido Comunista em todo o Brasil, na América Latina inteira”.
Mr.
Dops e Mr. Bond
“Depois
que o presidente Truman criou a CIA, era a CIA que acompanhava o movimento dos
subversivos”, continua. “Então trabalhávamos juntos, viajávamos juntos em
muitos casos, mas nossas reuniões eram fora do DOPS, na happy hour de bares de
hotéis como o Jandaia e o Jaraguá, no centro de São Paulo. O Fleury também ia,
o Flaquer, o Gama e Silva e até o Carlos Lacerda (ex-governador do Rio, que
conspirou pelo golpe e acabou sendo cassado em 1968). O Niles Bond era chefe lá
deles, sujeito bacana, conhecia bem o Brasil, e gostava muito de mim. Me
chamava de Mr. Dops, porque eu sempre o atendia em tudo que precisava e era ele
que me mandava para Langley”, frisa mais uma vez, mostrando uma foto sua com
trajes de George Washington ao lado de um colega fantasiado de soldado
federalista, tirada durante uma de suas estadas em Washington (FOTO).
“Não
lembro quando foi tirada porque estive oito vezes em cursos de treinamento nos
Estados Unidos (entre 1963 e 1970)”, diz ele. “Fiz cursos técnicos, de
polígrafo, técnicas de inteligência, infiltração. E sobre o comunismo também,
eles tinham verdadeira obsessão. Saí de lá convencido de que eles, sim, são
duros, fazem o que for preciso para garantir seus princípios”.
Entre 1959
e 1969, Niles W. Bond foi adido da embaixada no Rio e cônsul geral em São
Paulo, segundo seu currículo na Association for Diplomatic Studies and
Training, que também aponta a ligação com a CIA desde 1956, quando era assessor
político da embaixada italiana.
Langley,
frequentemente usado como sinônimo de CIA nos Estados Unidos, é o nome dos
arredores da pequena cidade de McLean, na Virginia, onde desde o início da
década de 1960 ficam os “headquarters” da agência de inteligência americana, a
alguns quilômetros de Washington.
Com o
tempo, descobri que quando o doutor Paulo se referia a Langley, significava que
estava em treinamento em instalações na CIA, não apenas na sede, mas “em muitos
outros lugares, até na Flórida”, como confirmou depois.
As informações
sobre a CIA foram reveladas por doutor Paulo quando o inquiri sobre sua
transferência, em 1ª de setembro de 1964, para o Ministério da Guerra, lotado
no II Exército – informação que obtive checando todas as suas nomeações,
transferências e promoções no Diário Oficial (seu currículo oficial omite essa
significativa passagem).
Ele diz
que foi transferido porque havia sido encarregado (com mais três delegados) de
montar um plano de estruturação da Polícia Federal pelo general Riograndino
Kruel, irmão do comandante do II Exército, Amaury Kruel (ambos também treinados
nos Estados Unidos): “O Edgar Hoover (fundador do FBI) é um cara que admiro
muito, e os americanos achavam muito importante montar uma polícia como essa no
Brasil – o DOPS paulista já atuava como polícia federal, mas era subordinado à
secretaria de segurança estadual, o que atrapalhava nossos movimentos”,
explicou.
Até
hoje a Polícia Federal registra seus agradecimentos à “revolução de 1964” (golpe) no
site oficial da entidade: “Somente em 1964, com a mudança
operada no pensamento político da Nação, a idéia da criação de um Departamento
Federal de Segurança Pública, com capacidade de atuação em todo o território,
prosperou e veio a tornar-se realidade”.
O capitão americano
e a guerrilheira
“Felizmente
aqui no Brasil não fizemos como em outros países, matanças. Não houve isso.
Houve só morte de quem quis enfrentar a polícia. Isso em qualquer lugar do
mundo. Quando uma guerrilha deles lá, um aparelho, matou o nosso colega lá em
Copacabana, o Moreira, o que nós tinhamos que fazer? Descobrir os caras e matar
também”, ri. “Polícia é assim”, avalia o “doutor” Paulo.
Dulce
de Souza Maia, militante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) sentiu na
carne o peso dessa vingança, quando foi presa na madrugada do dia 25 de janeiro
de 1969, enquanto dormia na casa da mãe.
Dois
dias antes, vários líderes da VPR tinham sido presos e os repressores já sabiam
que ela havia participado de um atentado a bomba no II Exército, que matou o
sentinela Mario Kozel Filho. Também havia sido erroneamente apontada como uma
das autoras do atentado que em 1968 matou o capitão do Exército americano,
Charles Chandler, acusado pelos guerrilheiros de dar aulas de tortura no Brasil
a serviço da CIA.
Dulce
não sabe dizer se todos que a torturaram no quartel da Polícia do Exército eram
militares, mas sua lembrança mais forte é a cara redonda do homem que a
estuprou, depois de dar choques em sua vagina. “Eu aguentei 48 horas”, me disse,
por telefone. “Depois acabei dando um endereço de um apartamento que eu
conhecia porque tinho ido a uma feijoada, não era um aparelho”.
Foi
então levada para o DOPS, metida em uma viatura com uma equipe de policiais dos
quais não sabe o nome: “Nem lembro das caras, estava quase morta, sei que eles
me levaram para a rua Fortunato e apontei o prédio que só reconheci porque
tinha parado o meu carro na frente – eu não sabia que o João Leonardo, que
inclusive era de outra organização (ALN), morava ali. Lembro só que o vi quando
a porta abriu”, lamenta.
A
versão do delegado Bonchristiano sobre o mesmo episódio omite detalhes
significativos. “Nós estávamos atrás dos caras que mataram o Chandler, coitado,
executado na porta da casa dele, no Sumaré. Em 36 horas, o Cara Feia, um tira
excepcional que já morreu, sabia quem tinha feito. Aí, uma menina que nós
prendemos, nos conta de uma reunião na Rua Fortunato, perto da Santa Casa da
Misericórdia. Eu fui com a menina. Mandamos ela tocar a campainha. Peguei o
professor que era o dono do apartamento, prendemos. “Voltamos para o DOPS, eu,
Tiroteio, Cara Feia e a menina e deixei dois tiras, o Raul Careca e o Nicolino
Caveira, para ver se acontecia mais alguma coisa. Telefone. ‘Doutor, o senhor
tem que vir aqui, teve um problema’. ‘Muito problema?’ ‘Demais’, quando é
demais é que houve morte. Quando cheguei lá, tinha sangue para todo lado. O
Raul Careca, que era um ótimo atirador, tinha dado 18 tiros no Marquito (Marco
Antonio Brás de Carvalho). Aí que eles me contaram o que tinha acontecido: esse
que matou o Chandler tinha chegado e quando abriu a porta, falou assim: “Quem
são vocês?” E os tiras: “Nós somos da família”. “Ah é?” E puxou a arma. Os
tiras revidaram e ele morreu”.
Bonchristiano
jamais mencionou que a “menina” estava quebrada pela tortura. Mas corrigiu a
versão que consta do depoimento de Raul Careca em um processo movido pela
família de Marquito. Ali ele dizia que foram dois os tiros disparados.
Mano
nera
“O caso
Chandler gerou consternação, mas, sobretudo preocupação entre o grupo de
assessores policiais, pois estes poderiam tornar-se alvo também. Participaram
das investigações e ajudaram a identificar as armas utilizadas, enviando o
material para estudo em laboratórios de criminalística do FBI”, relata o
professor Rodrigo Patto, da UFMG, que estuda a relação entre a USAID e a CIA.
Patto,
porém, não sabe dizer se Chandler era de fato da CIA como acreditavam os
militantes da ALN e da VPR que decidiram matá-lo. “Ele havia estado no Vietnã,
e estava oficialmente em viagem de estudos no Brasil, diz.
Em
seguida ao assassinato de Chandler, um ex-instrutor americano de Bonchristiano,
Peter Ellena, veio para o Brasil para acompanhar as investigações, o que
melindrou o pessoal do DOPS. “Demos para ele a mano nera (símbolo da máfia), a
mão negra ensaguentada”, diverte-se, contando que os policiais simularam um
bilhete de ameaças dos guerrilheiros para assustar o “gringo”. “Ele ficou
morrendo de medo”.
O
jornalista Percival de Souza relata que o DOPS (vejam bem!) produzia relatórios
confidenciais diários sobre o caso para o consulado americano, e que
descobriram o fio da meada que os levaria a Marquito, “menos de um mês depois
do fuzilamento”, registrando em seguida a versão que Bonchristiano continua a
defender: um acidente ocorrido na BR-116 no dia 8 de novembro de 1968, na
altura de Vassouras (RJ), teria matado Catarina e João Antonio Abi-Eçab que
estava em um fusca.
Ao
socorrer o casal, a polícia teria encontrado uma metralhadora INA calibre 35,
como a que matou Chandler. O DOPS foi avisado, e Bonchristiano viajou
imediatamente a Vassouras. Lá o delegado teria descoberto que o casal,
militante da ALN, teria ido ao Rio de Janeiro para encontrar Marighella, e que
a metralhadora era a mesma que matou Chandler. Tinha encontrado a arma do
crime.
O
“teatrinho”, como os policiais chamavam as versões criadas para encobrir seus
crimes,
foi
desmontado a partir do relato de um ex-soldado do Exército ao jornalista Caco
Barcellos, em 2001, em que reconheceu Catarina “como presa, torturada e morta
em um sítio em São João do Meriti (município vizinho a Vassouras)” e afirmou
que os órgãos de repressão, após a execução, teriam forjado o acidente.
Mais
uma vez a “eficência” do DOPS veio da tortura. Bonchristiano, que insistiu até
o fim na desmentida versão, diz que foi cumprimentado por Niles Bond pelo
feito. “O Chandler era um dos nossos, frequentava nossas reuniões, o Bond sabia
que eu ia resolver o caso”, gaba-se.
Esticadinha
no chão
Em
1983, os ventos democratas extinguiram o DOPS e trouxeram um novo delegado
geral, Maurício Henrique Pereira Guimarães, que despachou Bonchristiano para
uma obscura seção da Secretaria de Justiça, encarregada das viúvas dos soldados
mortos na II Guerra. “Preferi me aposentar, hoje não acredito mais em nada. Fiz
o que o presidente queria, os militares queriam, e não ganhei nem aquelas
medalhinhas que eles davam para todo mundo”, desdenha, referindo-se à Medalha
do Pacificador, entregue pelos militares a torturadores famosos.
Mas o
Mr. Dops não tem muito do que reclamar. Em seus primeiros oito anos de DOPS
subiu da 5ª para a 1ª classe, como só acontecia aos que participavam da linha
de frente da repressão. Ficou um tempo na “geladeira” quando um desafeto, o
coronel Erasmo Dias, assumiu a secretaria de segurança (1974-1979). Mas
conseguiu depois a promoção a delegado de classe especial e se aposentou no
topo da carreira, em 1984.
A
família, porém, ainda sofre com o passado do delegado. A filha, uma artista
plástica, escolheu o prédio do antigo DOPS como cenário de uma performance
acadêmica. No Facebook, comenta que o pai ficou “do lado dos algozes da
ditadura”, enquanto uma de suas filhas – neta de Bonchristiano – faz campanha
pela Comissão da Verdade em seu perfil.
Dona
Vera sente a distância dos netos e lembra com amargura do tempo em que o marido
trabalhava no DOPS. Via-se sozinha dias a fio com três filhos pequenos: “Eu não
podia falar com ele nem por telefone, ligava lá e me diziam ‘a senhora fica
tranquila que ele está bem’”, conta. “E eu, apavorada com as ameaças que a
gente recebia por telefone, meus filhos iam escoltados para a escola”, diz.
Ela
traz ainda outra lembrança: “Uma vez, minha filha era pequenininha, e quando o
Campão, que trabalhava para o Zé Paulo, veio buscá-la para escola, ela desatou
a chorar ao ver aquele homão, parecia um índio, vestido de amarelo da cabeça
aos pés”, diz.
“Era o meu motorista no DOPS, depois veio me pedir licença para
trabalhar com o Fleury, ‘lá a gente ganha mais, né doutor?’ Já morreu,
coitado”, intervém Bonchristiano.
José Campos Correia Filho, o
Campão, era um conhecido torturador – dos mais cruéis – segundo Percival de
Souza, e membro do Esquadrão da Morte. Além motorista do “doutor”, ele conduzia
cadáveres levados do DOPS na calada da noite para desová-los nos cemitérios de
periferia, segundo o próprio Bonchristiano.
No
final de novembro de 2011, o governador Geraldo Alckmin acatou o lobby da
Associação de Delegados de São Paulo (cujo patrono é o falecido delegado
Antonio Ribeiro de Andrade, o primeiro chefe de dr. Paulo no DOPS) e mandou
para a Assembléia Legislativa um projeto de lei que equipara as carreiras de
delegados de polícia, procuradores e promotores, sob o argumento de que a
polícia civil é judiciária, e portanto deve ser ligada ao Poder Judiciário e
não à Secretaria de Segurança Pública.
O
projeto, que o “doutor” Paulo muitas vezes defendeu em nossas entrevistas,
faria sua aposentadoria pular dos atuais 11 mil reais para cerca de 20 mil
reais, de acordo com os cálculos que ele mesmo fez.
A
partir do momento em que o acalentado projeto foi enviado para a Assembleia, o
ex-delegado resolveu encerrar nossas conversas.
Retornei
uma última vez a seu apartamento, em janeiro deste ano, para checar alguns
dados e ele deixou escapar o trecho de uma conversa que tive com um dos meus
filhos, por celular. Estava disposto a me assustar.
Na
despedida, preveniu-me mais uma vez sobre o “perigo” que “nós dois” estaríamos
correndo se eu levasse adiante qualquer investigação sobre a localização dos
corpos desaparecidos, advertência que fez desde a primeira entrevista. Perdi a
paciência: “Mas, doutor, quase todo mundo que o senhor conheceu naquela época
já morreu! Nós vivemos em uma democracia, ninguém vai matar assim um jornalista
ou um delegado aposentado”.
“Isso é
o que você pensa”, retrucou. “Os que hoje ocupam os cargos daqueles, antigos,
também assumiram o compromisso de proteger o pacto”, afirmou. “Não tem isso de
democracia, minha cara jornalista, eles fazem o que precisa ser feito. Se
alguém é atropelado ou baleado no trânsito, é uma coisa que acontece, em São
Paulo. Não quero ver você esticadinha no chão”.
Quando
entrei no taxi para ir embora, refletindo sobre quem afinal estaria ameaçando
quem, lembrei de uma ocasião em que nossas relações eram mais amistosas e pude
lhe perguntar por que “eles” tinham enterrado os corpos, em vez de atirá-los ao
mar ou incendiá-los para apagar definitivamente as provas.
De pé,
na sala decorada com os estofados confortáveis, rodeados por mesinhas
enfeitadas com fotos de família e bibelôs de inspiração religiosa,
Bonchristiano reagiu: “Nós somos católicos, pô!”.