quarta-feira, 12 de abril de 2017

Veio-me pelo facebook: =► Obrigado hein!!!
O encontro entre Sartre, Simone e Che – por Sartre
"Não somente um intelectual mas o ser humano mais completo da nossa geração." Jean-Paul Sartre
(...)
"Em Cuba, a idade preserva seus dirigentes: sua juventude lhes permite afrontar a realidade revolucionária em sua austera dureza. Se têm que aprender, se devem ajudar-se com conhecimentos técnicos, os responsáveis não se dirigem a ninguém: dão um jeito. Ninguém saberá em que setor –geralmente é na vida privada – terão recolhido algumas migalhas de tempo abandonadas; ninguém saberá que aumentam indefinidamente a intensidade de seu esforço para reduzir indefinidamente a duração da aprendizagem.
Mas podemos adivinhar o que não nos dizem. Para citar somente um caso, o comandante Ernesto Guevara é considerado homem de grande cultura e isso se nota; não se necessita muito tempo para compreender que detrás de cada frase sua há uma reserva de ouro. Mas um abismo separa essa ampla cultura, esses conhecimentos gerais de um médico jovem que, por inclinação, por paixão, se dedicou aos estudos das ciências sociais, dos conhecimentos precisos e técnicos indispensáveis a um banqueiro estatal.
Nunca fala sobre isso, a não ser para pilheriar sobre suas mudanças de profissão; mas a intensidade de seu esforço se sente: se trai por todas as partes, menos pelo rosto tranquilo e relaxado.
Para começo de conversa, a hora de nosso encontro era insólita: meia-noite. E no entanto eu tive sorte: os jornalistas e visitantes estrangeiros são recebidos amável e longamente, mas às duas ou três da manhã.
Para chegar a seu gabinete tivemos que cruzar um vasto salão que só tinha móveis encostados nas paredes: algumas cadeiras e bancos. Em um canto havia uma mesinha com um telefone. Em todos os assentos havia soldados derrotados pelo cansaço; uns montavam guarda e outros dormiam, incomodados até no sono pela desconfortável posição.
Detrás da mesa com o telefone, vi um jovem oficial rebelde, praticamente dobrado em quatro, com os longos cabelos negros caídos sobre os ombros, seu boné cobrindo o nariz e os olhos fechados. Roncava suavemente e seus lábios seguravam fortemente a ponta de um charuto apenas começado: o último ato do adormecido havia sido acendê-lo, para se defender das tentações do sono.
Cruzando aquele salão tive, apesar de estar brilhantemente iluminado, a sensação de que havia subido num trem antes do amanhecer e penetrado num compartimento adormecido. Reconhecia os olhos avermelhados que se abriam, os corpos dobrados ou retorcidos, extenuados, o incômodo noturno. Eu ainda não estava com sono, mas através daqueles homens sentia a densidade das noites mal dormidas.
Uma porta se abriu e Simone de Beauvoir e eu entramos: a impressão desapareceu. Um oficial rebelde, coberto com uma boina, me esperava. Tinha barba e os cabelos longos como os soldados da ante-sala, mas seu rosto liso e disposto me pareceu matinal. Era Guevara.
Saíra do banho? Por que não? O certo é que começara a trabalhar cedo na véspera, almoçado e comido em seu escritório, recebido visitantes e esperava receber outros depois de mim. Escutei que a porta se fechava às minhas costas e me esqueci do cansaço e da noção da hora. Naquele escritório não entra a noite; para aqueles homens em plena vigília, ao melhor deles, dormir não parece uma necessidade natural, mas uma rotina de que praticamente se livraram.
Não sei quando descansam Guevara e seus companheiros. Suponho que depende, o rendimento decide; se cai, param. Mas de todas as maneiras, se buscam em suas vidas horas vagas, é normal que as arranquem aos latifúndios do sono.
Imaginem um trabalho contínuo, que compreende três turnos de oito horas, mas que faz 14 meses que é realizado por uma só equipe: eis o ideal que quase alcançaram aqueles jovens. Em 1960, em Cuba, as noites são brancas: ainda se distinguem dos dias; mas é só por cortesia e consideração ao visitante estrangeiro.
Mas apesar de suas extremadas considerações, não podiam fazer outra coisa que reduzir ao mínimo possível as horas imbecis que eu dedicava ao sono: ia dormir muito tarde e me acordavam muito cedo. Eu não o sentia: pelo contrário, com frequência me chateava, por tarde que fosse, ir dormir quando eles velavam, ainda que tivessem acordado cedo; por saber que me haviam precedido em várias horas. É que era impossível viver naquela ilha sem participar da tensão generalizada.
Aqueles jovens rendem à energia, tão amada por Stendhal, um culto discreto. Mas não ache que falam dela, que a convertem em teoria. Vivem a energia, a praticam, talvez a inventem; ela se comprova em seus efeitos, mas não em palavras. Sua energia se manifesta.
Para manter dia e noite a alegria limpa e clara da manhã em seu gabinete e em seu rosto, Guevara necessita de energia. Todos a necessitam para trabalhar, mas mais ainda para apagar, à medida que se apresentam, as pegadas do trabalho e as marcas do sono. Não se recusam a falar de seu nervosismo, mas não o deixam mostrar-se: levam o controle de si mesmo até parecer, ou melhor, até sentir-se tranquilos. As coisas vão tão longe que empregam essa energia, convertida em sua segunda natureza, para tiranizar seu temperamento.
Fazem o necessário, todo o necessário, mais que o necessário; até o supérfluo. Já disse que desprezavam o sono; é necessário; por outro lado, não suportariam –e eu o concebo também– que se ocorresse uma agressão fossem surpreendidos na cama. Quem não os compreenderia? Quem não compreenderia que a angústia e a cólera diante dos atentados e sabotagens os mantém despertos mais de uma noite?
Mas eles vão além: quase chegam a repetir a frase de Pascal: “é preciso não dormir”. Se diria que o sono os abandonou, que também emigrou a Miami. Eu só vejo neles a necessidade de ficarem despertos". Jean Paul Sartre*
Alfio Bogdan - Físico e Professor - analista em acidente de trânsito

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