Entre os signatários, Celso Antônio Bandeira de Mello,
Pedro Serrano e Rafael Valim
CARTA ABERTA EM REPÚDIO AO
REGIME DE SUPRESSÃO EPISÓDICA DE DIREITOS E GARANTIAS VERIFICADO NA OPERAÇÃO
LAVA JATO
No plano do
desrespeito a direitos e garantias fundamentais dos acusados, a Lava Jato já
ocupa um lugar de destaque na história do país.
Nunca houve um
caso penal em que as violações às regras mínimas para um justo processo estejam
ocorrendo em relação a um número tão grande de réus e de forma tão sistemática.
O menoscabo à
presunção de inocência, ao direito de defesa, à garantia da imparcialidade da
jurisdição e ao princípio do juiz natural, o desvirtuamento do uso da prisão
provisória, o vazamento seletivo de documentos e informações sigilosas, a
sonegação de documentos às defesas dos acusados, a execração pública dos réus e
a violação às prerrogativas da advocacia, dentre outros graves vícios, estão se
consolidando como marca da Lava Jato, com consequências nefastas para o
presente e o futuro da justiça criminal brasileira.
O que se tem visto nos últimos
tempos é uma espécie de inquisição (ou neoinquisição), em que já se sabe, antes
mesmo de começarem os processos, qual será o seu resultado, servindo as etapas
processuais que se seguem entre a denúncia e a sentença apenas para cumprir
‘indesejáveis’ formalidades.
Nesta última semana, a reportagem
de capa de uma das revistas semanais brasileiras não deixa dúvida quanto à
gravidade do que aqui se passa.
Numa atitude inconstitucional,
ignominiosa e tipicamente sensacionalista, fotografias de alguns dos réus
(extraídas indevidamente de seus prontuários na Unidade Prisional em
que aguardam julgamento) foram estampadas de forma vil e espetaculosa, com
o claro intento de promover-lhes o enxovalhamento e instigar a execração
pública.
Trata-se, sem dúvida, de mais
uma manifestação da estratégia de uso irresponsável e inconsequente da mídia,
não para informar, como deveria ser, mas para prejudicar o direito de defesa,
criando uma imagem desfavorável dos acusados em prejuízo da presunção da
inocência e da imparcialidade que haveria de imperar em seus julgamentos.
Ainda que parcela significativa
da população não se dê conta disso, esta estratégia de massacre midiático
passou a fazer parte de um verdadeiro plano de comunicação, desenvolvido em
conjunto e em paralelo às acusações formais, e que tem por espúrios objetivos
incutir na coletividade a crença de que os acusados são culpados (mesmo
antes deles serem julgados) e pressionar instâncias do Poder Judiciário a
manter injustas e desnecessárias medidas restritivas de direitos e prisões
provisórias, engrenagem fundamental do programa de coerção estatal à celebração
de acordos de delação premiada.
Esta é uma prática absurda e que
não pode ser tolerada numa sociedade que se pretenda democrática, sendo preciso
reagir e denunciar tudo isso, dando vazão ao sentimento de indignação que toma
conta de quem tem testemunhado esse conjunto de acontecimentos.
A operação Lava Jato se
transformou numa Justiça à parte.
Uma especiosa Justiça que se
orienta pela tônica de que os fins justificam os meios, o que representa um
retrocesso histórico de vários séculos, com a supressão de garantias e direitos
duramente conquistados, sem os quais o que sobra é um simulacro de processo;
enfim, uma tentativa de justiçamento, como não se via nem mesmo na época
da ditadura.
Magistrados das altas Cortes do
país estão sendo atacados ou colocados sob suspeita para não decidirem
favoravelmente aos acusados em recursos e habeas corpus ou porque decidiram ou
votaram (de acordo com seus convencimentos e consciências) pelo
restabelecimento da liberdade de acusados no âmbito da Operação Lava Jato, a
ponto de se ter suscitado, em desagravo, a manifestação de apoio e
solidariedade de entidades associativas de juízes contra esses abusos,
preocupadas em garantir a higidez da jurisdição.
Isto é gravíssimo e, além de
representar uma tentativa de supressão da independência judicial, revela que
aos acusados não está sendo assegurado o direito a um justo processo.
É de todo inaceitável, numa
Justiça que se pretenda democrática, que a prisão provisória (ou a ameaça de
sua implementação) seja indisfarçavelmente utilizada para forçar a
celebração de acordos de delação premiada, como, aliás, já defenderam publicamente
alguns Procuradores que atuam no caso.
Num dia os réus estão
encarcera dos por força de decisões que afirmam a imprescindibilidade de
suas prisões, dado que suas liberdades representariam gravíssimo risco à
ordem pública; no dia seguinte, fazem acordo de delação premiada e são postos
em liberdade, como se num passe de mágica toda essa imprescindibilidade da
prisão desaparecesse.
No mínimo, a prática evidencia o
quão artificiais e puramente retóricos são os fundamentos utilizados nos
decretos de prisão.
É grave o atentado à
Constituição e ao Estado de Direito e é inadmissível que o Poder Judiciário não
se oponha a esse artifício.
É inconcebível que os processos
sejam conduzidos por magistrado que atua com parcialidade, comportando-se de
maneira mais acusadora do que a própria acusação.
Não há processo justo quando o
juiz da causa já externa seu convencimento acerca da culpabilidade dos réus em
decretos de prisão expedidos antes ainda do início das ações penais.
Ademais, a sobreposição de
decretos de prisão (para embaraçar o exame de legalidade pelas Cortes
Superiores e, consequentemente, para dificultar a soltura dos réus)
e mesmo a resistência ou insurgência de um magistrado quanto
ao cumprimento de decisões de outras instâncias, igualmente
revelam uma atuação judicial arbitrária e absolutista, de todo
incompatível com o papel que se espera ver desempenhado por um juiz, na
vigência de um Estado de Direito.
Por tudo isso, os advogados,
professores, juristas e integrantes da comunidade jurídica que subscrevem
esta carta vêm manifestar publicamente indignação e repúdio ao regime de
supressão episódica de direitos e garantias que está contaminando o sistema
de justiça do país.
Não podemos nos calar diante do
que vem acontecendo neste caso.
É fundamental que nos insurjamos
contra estes abusos.
O Estado de Direito está sob
ameaça e a atuação do Poder Judiciário não pode ser influenciada pela
publicidade opressiva que tem sido lançada em desfavor dos acusados e que
lhes retira, como consequência, o direito a um julgamento justo e
imparcial – direito inalienável de todo e qualquer cidadão e base
fundamental da democracia.
Urge uma postura rigorosa de
respeito e observância às leis e à Constituição brasileira, remanescendo a
esperança de que o Poder Judiciário não coadunará com a reiteração dessas
violações.
Alfio Bogdan - Físico e Professor
Divulgado em www.viomondo.com.br
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