sábado, 11 de janeiro de 2020

Obliqüidades do Eu ou Coimo a ninfa Eco ficou prisioneira do claustro de Madame Selfie

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Luiz Roberto Benatti & Elko Perissinotti
Desde que os ícones religiosos recriaram rostos que jamais existiram, com uma tiara de luz acima da cabeça, não mais deixamos de nos amar. Fato é que nunca amamos o outro ou um outro; somente a nós mesmos. O outro não existe, a não ser revestido de grande Outro, o que nos torna tementes aos deuses, aos fantasmas e às sombras. Narciso sabia disso, e criou a sua própria selfie. Como Prometeu castigado, também sabemos disso, mas resistimos/insistimos e depois vamos dar esmolas ao mendigo, para ganhar indulgências. O amor a si próprio vence até mesmo nossas paixões por grandes objetos de desejo, como Marilyn Monroe e Scarlett Johansson. Entre o nosso adorado corpo desconhecidamente assexuado e os de Marilyn e Scarlett, ficamos com o nosso que é bem mais desejável. O amor a si próprio é ato fenomenal porque ainda que estivéssemos contrariados com nós mesmos, na manhã seguinte ao acordar voltamos (ou voltaríamos?) a erguer a bandeira branca da paz, com uma suave inscrição: “eu me amo, acima de todas as coisas”. Nenhum de nós será feio o bastante para crer que, mesmo o buraco do queixo do Kirk Douglas, não possa ser um traço de congenial beleza. Estamos doentes, mas sempre estivemos. O ruim é que ultimamente o paciente vem piorando. Na selfie, não há +garota que se comporte como o roto que fala do defeituoso, porque nos vemos no retrato como virtuosos, com ou sem ninguém ao lado. Ainda não há vacina para a histeria; antigamente havia: as tias da zona de luzinhas vermelhas e os espanadores de xoxotas (vibradores do século retrasado do Dr. Taylor). Como a fila anda, restou o velho espelho e as suas ramificações “photoshopadas” para decifrar a origem dos abismos no corpo e na alma. Como na esquizofrenia, toda selfie tem uma das origens num pedaço de invalidez crônica que nos habita, e há situações em que a fatia é bem grande. São esses pedaços e essas fatias que retroalimentam a selfie. Foi a selfie que ensinou a Lacan que a relação sexual não existe. Adler, muito antes, já sabia da potência da vontade do poder, muito mais forte que a velha libido. Como os pernilongos da febre amarela, a selfie tem poucos dias de vida, mas seu poder de reencarnação imediata é dantesco. Uma izselfie só não domina suas sombras, que têm vida própria e nos assombram. Jung buscava a segunda sombra, isto é, a sombra da sombra, aquela à qual chamamos fantasma e que se esgueira pelos cantos de nossas casas. Andróides e assemelhados são nossos estúdios cinematográficos portáteis, dos quais somos diretor e ator. Nem todos os enquadramentos podem ser levados a cabo, mas isso é entrave de menor importância. O P.A.(?) ou plano geral fechado, bem como o ângulo visual aberto são impensáveis: o outro só nos interessa (interessa?) se estiver na platéia. Não interessa às promotoras da selfie o P.D. ou plano dos detalhes: o beicinho só será um chamariz estético se aparecer em close-up e, ainda assim, fugaz. Mas qualquer garota adolescente sabe/não sabe da importância do beicinho.É provável que Jean-Paul Sartre não ficasse amuado se disséssemos que a Selfie é um fenômeno, tanto é verdade que ela se firma entre ser e parecer (devo ser o da selfie, mas com quem me pareço?), antinomia que às beldades não interessa pôr em questão. Se se parece comigo não será algo que se desdobrou do Eu como consciência, na condição de duplo, já que a semelhança é outra coisa que não a coisa mesmo. Todo fenômeno é inapreensível: onde estarão a essência da Selfie e sua dissimulação? Aguarde o próximo retrato e depois outro e outro mais.Ao finalizar, poderíamos parodiar Susan Sontag e dizer que fotografar-se  constitui ato de auto-violação, na tentativa de me ver como nunca me vi antes, transformando-me num tirano  sedutor da plateia embevecida, como se a figurante da Selfie e suas espectadoras fossem tomadas pelo espírito de potência, num gesto que há de repetir-se até a morte já que o celular entra nesse delírio cinematográfico como um revólver.Trata-se dum assassínio subliminar, brando, porém apropriado para um instante de susto e tristeza, seguido de angústia.
Alfio Bogdan - Físico e Professor - analista de colisões em acidentes de trânsito. 

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