íntegra da carta
Somos bispos da Igreja
Católica, de várias regiões do Brasil, em profunda comunhão com o Papa Francisco
e seu magistério e em comunhão plena com a Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil, que no exercício de sua missão evangelizadora, sempre se coloca na
defesa dos pequeninos, da justiça e da paz. Escrevemos esta Carta ao Povo de Deus,
interpelados pela gravidade do momento em que vivemos, sensíveis ao Evangelho e
à Doutrina Social da Igreja, como um serviço a todos os que desejam ver superada
esta fase de tantas incertezas e tanto sofrimento do povo.
Evangelizar é a missão
própria da Igreja, herdada de Jesus. Ela tem consciência de que “evangelizar é
tornar o Reino de Deus presente no mundo” (Alegria do Evangelho, 176). Temos clareza
de que “a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus.
A nossa reposta de amor não deveria ser entendida como uma mera soma de
pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados […], uma
série de ações destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência. A
proposta é o Reino de Deus […] (Lc 4,43 e Mt 6,33)” (Alegria do Evangelho,
180). Nasce daí a compreensão de que o Reino de Deus é dom, compromisso e meta.
É neste horizonte que nos
posicionamos frente à realidade atual do Brasil. Não temos interesses político-partidários,
econômicos, ideológicos ou de qualquer outra natureza. Nosso único interesse é
o Reino de Deus, presente em nossa história, na medida em que avançamos na
construção de uma sociedade estruturalmente justa, fraterna e solidária, como
uma civilização do amor.
O Brasil atravessa um dos
períodos mais difíceis de sua história, comparado a uma “tempestade perfeita”
que, dolorosamente, precisa ser atravessada. A causa dessa tempestade é a
combinação de uma crise de saúde sem precedentes, com um avassalador colapso da
economia e com a tensão que se abate sobre os fundamentos da República, provocada
em grande medida pelo Presidente da República e outros setores da sociedade,
resultando numa profunda crise política e de governança.
Este cenário de perigosos
impasses, que colocam nosso País à prova, exige de suas instituições, líderes e
organizações civis muito mais diálogo do que discursos ideológicos fechados.
Somos convocados a apresentar propostas e pactos objetivos, com vistas à
superação dos grandes desafios, em favor da vida, principalmente dos segmentos
mais vulneráveis e excluídos, nesta sociedade estruturalmente desigual, injusta
e violenta. Essa realidade não comporta indiferença.
É dever de quem se coloca
na defesa da vida posicionar-se, claramente, em relação a esse cenário. As
escolhas políticas que nos trouxeram até aqui e a narrativa que propõe a complacência
frente aos desmandos do Governo Federal, não justificam a inércia e a omissão
no combate às mazelas que se abateram sobre o povo brasileiro. Mazelas que se
abatem também sobre a Casa Comum, ameaçada constantemente pela ação
inescrupulosa de madeireiros, garimpeiros, mineradores, latifundiários e outros
defensores de um desenvolvimento que despreza os direitos humanos e os da mãe
terra. “Não podemos pretender ser saudáveis num mundo que está doente. As
feridas causadas à nossa mãe terra sangram também a nós” (Papa Francisco, Carta
ao Presidente da Colômbia por ocasião do Dia Mundial do Meio Ambiente,
05/06/2020).
Todos, pessoas e
instituições, seremos julgados pelas ações ou omissões neste momento tão grave
e desafiador. Assistimos, sistematicamente, a discursos anticientíficos, que
tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos milhares de mortes pela COVID-19,
tratando-o como fruto do acaso ou do castigo divino, o caos socioeconômico que
se avizinha, com o desemprego e a carestia que são projetados para os próximos
meses, e os conchavos políticos que visam à manutenção do poder a qualquer preço.
Esse discurso não se baseia nos princípios éticos e morais, tampouco suporta
ser confrontado com a Tradição e a Doutrina Social da Igreja, no seguimento
Àquele que veio “para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo
10,10).
Analisando o cenário
político, sem paixões, percebemos claramente a incapacidade e inabilidade do
Governo Federal em enfrentar essas crises. As reformas trabalhista e
previdenciária, tidas como para melhorarem a vida dos mais pobres, mostraram-se
como armadilhas que precarizaram ainda mais a vida do povo. É verdade que o
Brasil necessita de medidas e reformas sérias, mas não como as que foram
feitas, cujos resultados pioraram a vida dos pobres, desprotegeram vulneráveis,
liberaram o uso de agrotóxicos antes proibidos, afrouxaram o controle de
desmatamentos e, por isso, não favoreceram o bem comum e a paz social. É
insustentável uma economia que insiste no neoliberalismo, que privilegia o
monopólio de pequenos grupos poderosos em detrimento da grande maioria da população.
O sistema do atual governo
não coloca no centro a pessoa humana e o bem de todos, mas a defesa intransigente
dos interesses de uma “economia que mata” (Alegria do Evangelho, 53), centrada
no mercado e no lucro a qualquer preço. Convivemos, assim, com a incapacidade e
a incompetência do Governo Federal, para coordenar suas ações, agravadas pelo
fato de ele se colocar contra a ciência, contra estados e municípios, contra
poderes da República; por se aproximar do totalitarismo e utilizar de expedientes
condenáveis, como o apoio e o estímulo a atos contra a democracia, a flexibilização
das leis de trânsito e do uso de armas de fogo pela população, e das leis do
trânsito e o recurso à prática de suspeitas ações de comunicação, como as
notícias falsas, que mobilizam uma massa de seguidores radicais.
O desprezo pela educação,
cultura, saúde e pela diplomacia também nos estarrece. Esse desprezo é visível
nas demonstrações de raiva pela educação pública; no apelo a ideias obscurantistas;
na escolha da educação como inimiga; nos sucessivos e grosseiros erros na
escolha dos ministros da educação e do meio ambiente e do secretário da
cultura; no desconhecimento e depreciação de processos pedagógicos e de importantes
pensadores do Brasil; na repugnância pela consciência crítica e pela liberdade
de pensamento e de imprensa; na desqualificação das relações diplomáticas com
vários países; na indiferença pelo fato de o Brasil ocupar um dos primeiros
lugares em número de infectados e mortos pela pandemia sem, sequer, ter um
ministro titular no Ministério da Saúde; na desnecessária tensão com os outros
entes da República na coordenação do enfrentamento da pandemia; na falta de
sensibilidade para com os familiares dos mortos pelo novo coronavírus e pelos
profissionais da saúde, que estão adoecendo nos esforços para salvar vidas.
No plano econômico, o
ministro da economia desdenha dos pequenos empresários, responsáveis pela
maioria dos empregos no País, privilegiando apenas grandes grupos econômicos,
concentradores de renda e os grupos financeiros que nada produzem. A recessão
que nos assombra pode fazer o número de desempregados ultrapassar 20 milhões de
brasileiros. Há uma brutal descontinuidade da destinação de recursos para as
políticas públicas no campo da alimentação, educação, moradia e geração de
renda.
Fechando os olhos aos
apelos de entidades nacionais e internacionais, o Governo Federal demonstra
omissão, apatia e rechaço pelos mais pobres e vulneráveis da sociedade, quais
sejam: as comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, as populações das
periferias urbanas, dos cortiços e o povo que vive nas ruas, aos milhares, em
todo o Brasil. Estes são os mais atingidos pela pandemia do novo coronavírus e,
lamentavelmente, não vislumbram medida efetiva que os levem a ter esperança de
superar as crises sanitária e econômica que lhes são impostas de forma cruel. O
Presidente da República, há poucos dias, no Plano Emergencial para
Enfrentamento à COVID-19, aprovado no legislativo federal, sob o argumento de
não haver previsão orçamentária, dentre outros pontos, vetou o acesso a água
potável, material de higiene, oferta de leitos hospitalares e de terapia intensiva,
ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, nos territórios indígenas,
quilombolas e de comunidades tradicionais (Cf. Presidência da CNBB, Carta
Aberta ao Congresso Nacional, 13/07/2020).
Até a religião é utilizada
para manipular sentimentos e crenças, provocar divisões, difundir o ódio, criar
tensões entre igrejas e seus líderes. Ressalte-se o quanto é perniciosa toda
associação entre religião e poder no Estado laico, especialmente a associação
entre grupos religiosos fundamentalistas e a manutenção do poder autoritário.
Como não ficarmos indignados diante do uso do nome de Deus e de sua Santa Palavra,
misturados a falas e posturas preconceituosas, que incitam ao ódio, ao invés de
pregar o amor, para legitimar práticas que não condizem com o Reino de Deus e
sua justiça?
O momento é de unidade no
respeito à pluralidade! Por isso, propomos um amplo diálogo nacional que
envolva humanistas, os comprometidos com a democracia, movimentos sociais,
homens e mulheres de boa vontade, para que seja restabelecido o respeito à
Constituição Federal e ao Estado Democrático de Direito, com ética na política,
com transparência das informações e dos gastos públicos, com uma economia que
vise ao bem comum, com justiça socioambiental, com “terra, teto e trabalho”,
com alegria e proteção da família, com educação e saúde integrais e de
qualidade para todos. Estamos comprometidos com o recente “Pacto pela vida e
pelo Brasil”, da CNBB e entidades da sociedade civil brasileira, e em sintonia
com o Papa Francisco, que convoca a humanidade para pensar um novo “Pacto
Educativo Global” e a nova “Economia de Francisco e Clara”, bem como, unimo-nos
aos movimentos eclesiais e populares que buscam novas e urgentes alternativas para
o Brasil.
Neste tempo da pandemia que
nos obriga ao distanciamento social e nos ensina um “novo normal”, estamos
redescobrindo nossas casas e famílias como nossa Igreja doméstica, um espaço do
encontro com Deus e com os irmãos e irmãs. É sobretudo nesse ambiente que deve
brilhar a luz do Evangelho que nos faz compreender que este tempo não é para a
indiferença, para egoísmos, para divisões nem para o esquecimento (cf. Papa
Francisco, Mensagem Urbi et Orbi, 12/4/20).
Despertemo-nos, portanto,
do sono que nos imobiliza e nos faz meros espectadores da realidade de milhares
de mortes e da violência que nos assolam. Com o apóstolo São Paulo, alertamos
que “a noite vai avançada e o dia se aproxima; rejeitemos as obras das trevas e
vistamos a armadura da luz” (Rm 13,12).
Alfio Bogdan – Físico e
Professor
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