Cândido Grzybowski
Cap.I
Há alguns anos foi constituído um
grupo de trabalho internacional –“The great transition initiative: visions and pathways for a
hopeful future”— "A grande
iniciativa de transição: visões e caminhos para um futuro de esperança”
—
para pensar propostas e práticas de transição para uma civilização planetária
enraizada na solidariedade,
na sustentabilidade
e no bem-estar
humano. Tratava-se de definir como, em cada situação, desencadear
processos, aqui e agora, que gestem a necessária transformação dos impasses a
que nos levou o desenvolvimento capitalista industrial, produtivista e
consumista, gerador de exclusões e desigualdades sociais eticamente
inaceitáveis e, ao mesmo tempo, da destruição ambiental que ameaça todas as
formas de vida e a integridade do planeta Terra. Como definir e
criar as condições para isso no Brasil, hoje uma das festejadas potências
emergentes?
Nunca
é demais lembrar o quanto o Brasil é ainda um país profundamente injusto. Apesar de ser a
sexta economia capitalista do mundo e dos enormes avanços recentes, induzidos
por ativas políticas distributivistas dos governos do PT, temos mais de 16 milhões
de pessoas vivendo como miseráveis, com menos de meio dólar per capita por dia,
e outros mais de 30 milhões com no máximo 1 dólar por dia. São aproximadamente 20%
da população total na pobreza e extrema pobreza, segundo critérios do
Banco Mundial, sem contar que o critério de meio dólar ou 1 dólar por dia é simplesmente
ridículo num país que pratica preços iguais aos dos países desenvolvidos◄.
Poderia enumerar várias gritantes
desigualdades sociais em todos os campos, incluindo desigualdades de gênero e
raciais. Mas talvez o maior contraste, revelador do tamanho das contradições,
seja o dado revelado por O Globo, um jornal de perfil bem conservador, no dia
15 de outubro passado. Segundo o jornal, 4.640 milionários brasileiros (aqueles que têm ao
menos US$ 30 milhões em conta bancária), têm riquezas que somam US$ 865 bilhões
(em reais, R$ 1,764 trilhões).
“É mais do
que as reservas internacionais de todos os países da União Europeia juntos”,
segundo o jornal. A renda per capita por dia de cada membro dessas riquíssimas
famílias é de milhares de dólares! Esse é o Brasil, usando o critério tão ao
gosto de um mundo dominado por mercados e dinheiro.
A questão da pobreza funciona
como um divisor político no processo de democratização do Brasil e nas opções
de desenvolvimento. O debate sobre o desenvolvimento no Brasil é dominado pelas,
visões e propostas, em relação ao quanto, como modelo e estratégia, ele é
distributivista e se é capaz ou não de enfrentar a enorme pobreza. O debate da
destruição ambiental, na arena pública, quando existe, tende a ser dominado
pela questão da justiça social. O grande jogo político se faz em torno da justiça social,
em que até amplos setores tradicionalmente predadores e conservadores se valem
do argumento social para continuar o seu negócio.
Considero ainda embrionárias e
até aqui com pouca capacidade de incidência política as demandas por aliar a
dimensão da justiça social e a dimensão ambiental como faces da mesma questão.
No Brasil, é ainda bem marginal o debate de alternativas ao desenvolvimento, de
mudança de paradigma, de transformar processos. Fundamentalmente – e ainda mais
nos governos sob hegemonia do PT, dos últimos 10 anos –, quer-se mais e mais
desenvolvimento, do mesmo desenvolvimento produtivista e consumista, só que com
inclusão social. Hoje estamos diante de um “novo desenvolvimentismo”, na
verdade do velho modelo de desenvolvimento com raízes da CEPAL combinado com
políticas sociais mais ativas em termos distributivos… do crescimento. E tal crescimento,
para praticar a inclusão social, precisa ser de 5 a 7% ao ano, como disse a
nossa presidente Dilma no Fórum Social Temático, em Porto Alegre, em janeiro de
2012.
Esse é o ponto de partida, duro e
difícil, de onde devemos partir para então pensar em mudar, definindo as
propostas e analisando se e como é possível politicamente viabilizá-las. Devido
à urgência que a mudança climática levanta, fixo meu olhar na questão
energética, na questão do agronegócio e, para finalizar, no que é preciso criar
em termos de imaginário mobilizador e de incidência no debate público para
viabilizar um processo de transição para outro paradigma civilizatório.
A
questão energética
O Brasil caminha a passos
grandes, de verdadeira potência emergente, para soluções energéticas que vão
torná-lo muito mais poluente do que é hoje. Na energia elétrica, devido às
hidrelétricas, temos uma matriz de produção relativamente “limpa”, se não for
contabilizado o passivo ambiental e social que as grandes barragens criaram ao
serem implantadas e continuam criando hoje. Pensando o futuro e a demanda
crescente por energia – pois, como nos dizem oficialmente, estamos longe do
padrão de consumo de energia elétrica dos países desenvolvidos –, novas hidrelétricas
precisam ser feitas. Hoje, o grande potencial de nova energia desse tipo se
concentra nos grandes rios da Amazônia. Dá para imaginar o que significa
construir de 40 a 60 hidrelétricas de médio e grande porte num território como
a Amazônia? Quanta terra inundada, mata destruída e impacto no clima e na
biodiversidade? Quantos territórios e povos indígenas devastados? Quantos
ribeirinhos, posseiros e coletores de frutos da floresta perderão seu modo de
subsistência?
O drama atual em torno de Belo Monte é
revelador do que pode acontecer. Tenho dito, e repito aqui: com energia e
mineração, com exploração da madeira e gado, depois soja, a Amazônia é o território
brasileiro de espoliação e colonização. Colonização interna, do poder e da
economia existente sobre o próprio povo brasileiro, de brasileiros sobre
brasileiros, por setores sociais dominantes de outras áreas e grandes grupos
empresariais, com olho no mercado mundial e, sobretudo, seu próprio bolso.
No debate político interno, se
não for possível implementar o projeto de tornar a Amazônia um grande
fornecedor de energia elétrica “sustentável”, o argumento bramido como ameaça é
que vamos ser obrigados a construir mais e mais termoelétricas a carvão ou gás!
Na prática, no entanto, o ritmo de construção de termoelétricas no país mostra
que a estratégia prioritária dos promotores do desenvolvimento a pleno vapor é
essa, independentemente de mais ou menos hidrelétricas.
Está claro que a opção do tal
“novo desenvolvimentismo” é o binômio hidrelétricas e termoelétricas, como,
aliás, está no Plano Decenal de Energia 2021. E, como fantasma, ronda a ameaça
da energia nuclear. A moratória no nuclear, depois do grande desastre no Japão,
é apenas temporária. O incrível é que, tendo o dobro de insolação da Alemanha,
sejamos tão reticentes em utilizar essa dádiva e avançar estrategicamente na
energia solar. A mesma atenção damos aos ventos que fazem tremular nossas
palmeiras nos mais de 8 mil km de litoral, mas... pouca energia elétrica
geram.
No centro da questão energética,
é preciso destacar o lugar estratégico das grandes construtoras. Fazem-se
grandes barragens e usinas porque é um bom negócio para empreiteiras. Já
existem estudos que mostram o potencial de pequenas hidrelétricas, voltadas às
necessidades locais, sem grandes impactos ambientais e sociais para a sua
implantação e posterior transmissão da energia gerada. Contabilizando tudo, as
pequenas geradoras hidrelétricas em rede são muito menos invasivas e muito mais
produtivas e democratizadoras da economia, alimentando a sustentabilidade nos territórios.
Só que não é exatamente isso que se busca com o desenvolvimento que temos. O
olhar sobre rios é sobre um recurso natural a explorar, e não aquela bacia
integradora, bem comum compartido por quem aí vive. Nunca é demais lembrar que
a opção por grande barragens hidrelétricas no Brasil nunca foi por ser energia
renovável, mas porque era frente de expansão para grandes negócios, induzida
pelo Estado desenvolvimentista em aliança com grupos empresariais.
Mas o calcanhar de aquiles energético do Brasil emergente são as jazidas de petróleo do pré-sal. Ao mesmo tempo que no mundo cresce o debate sobre como sair da dependência da matriz energética fóssil – principal fonte de emissão de gases que ameaçam o clima –, nós estamos caminhando a passos largos para mergulhar dedos, mãos e a própria cabeça no petróleo. É emblemático que o petróleo seja visto e saudado como a nossa carta de alforria para entrar no seleto clube dos desenvolvidos. Vejo na questão do petróleo nosso grande desafio político para pensar como sair dessa armadilha do desenvolvimento. O pior de tudo é o senso comum que se forjou, que aponta o petróleo como a base para o grande salto do Brasil ao tal desenvolvimento, isso sobretudo no meio da “classe batalhadora” – os mais de 30 milhões que saíram do limiar da pobreza com as políticas distributivas recentes.
Mas o calcanhar de aquiles energético do Brasil emergente são as jazidas de petróleo do pré-sal. Ao mesmo tempo que no mundo cresce o debate sobre como sair da dependência da matriz energética fóssil – principal fonte de emissão de gases que ameaçam o clima –, nós estamos caminhando a passos largos para mergulhar dedos, mãos e a própria cabeça no petróleo. É emblemático que o petróleo seja visto e saudado como a nossa carta de alforria para entrar no seleto clube dos desenvolvidos. Vejo na questão do petróleo nosso grande desafio político para pensar como sair dessa armadilha do desenvolvimento. O pior de tudo é o senso comum que se forjou, que aponta o petróleo como a base para o grande salto do Brasil ao tal desenvolvimento, isso sobretudo no meio da “classe batalhadora” – os mais de 30 milhões que saíram do limiar da pobreza com as políticas distributivas recentes.
As estimativas atuais das
reservas de petróleo do pré-sal são de 50 a 100 bilhões de barris. Estão
espalhadas ao longo de 800km, a cerca de 300km da costa brasileira; estão entre
5 e 7 mil metros abaixo do nível do mar. Tudo isso revela que o desafio
tecnológico da extração de tal petróleo é enorme, ainda mais depois do grande
acidente no Golfo do México. Mas o governo brasileiro decidiu enfrentar esse
desafio, e uma enorme arquitetura legal, institucional, financeira, industrial
e operacional está sendo construída para passar de um pouco mais de 2 milhões
de barris de petróleo/dia atuais para mais de 6 milhões em 2020. Claro, a maior
parte para exportação. O Brasil vai contribuir com mais de 3 milhões de
barris/dias para… Tudo continuar na mesma no mundo dependente de energia
fóssil.
A questão é trágica, mas não é
simples. Até recentemente (menos de 10 anos), o Brasil era um país em processo
de industrialização dependente de petróleo. Ainda nos anos 1950 do século
passado, uma grande mobilização em torno da campanha “O petróleo é nosso” levou
o então presidente Vargas a criar a Petrobras e o monopólio do petróleo. Muita
coisa se passou desde então, mas até hoje a Petrobras é vista como modelo de
Estado empreendedor e facilitador do desenvolvimento, além de símbolo de uma
cidadania que quer controlar o seu futuro. E é a Petrobras que, no arranjo
institucional feito pelo governo do PT, está no centro da operação do pré-sal,
revertendo a tendência de concessões para empresas privadas de lotes de
exploração adotada pelo governo anterior. Também desde o Governo Lula, foi
fixado um percentual de “componente nacional” nas enormes demandas de navios,
sondas e tudo o mais da Petrobras, fazendo renascer uma agressiva indústria
naval. Só para o pré-sal são mais de 60 navios petroleiros de grande porte –
dada a distância da costa – e mais de 60 sondas para extração de petróleo em
alto-mar. O movimento sindical, berço do PT, especialmente a Central Única dos
Trabalhadores (CUT), é hoje a principal força de apoio ao projeto petrolífero.
Mas tem mais. O debate no Brasil
não é se vale a pena explorar o petróleo ou deixá-lo onde está; pelo contrário.
O debate é sobre como distribuir as rendas do petróleo... Foi proposta uma nova
lei regulatória para todo o setor, a que volta botar a Petrobras no centro das
operações. Na mesma lei se instituiu um fundo soberano, sob administração
federal, sobre o principal das rendas do petróleo, um pouco em sintonia com o
que se fez na Noruega para fins sociais. Mas existem os royalties. Até agora,
só os estados e municípios das áreas de extração e refino recebiam royalties.
Com o pré-sal, instaurou-se uma disputa federativa, pois todos os Estados do
país querem participar do butim. A confusão da disputa dos ovos de ouro de uma
galinha petrolífera, que ainda não está produzindo, está na praça. O Rio de
Janeiro, principal estado produtor, teve em 2011 uma gigantesca mobilização, de
mais de 100 mil pessoas, em defesa dos royalties do petróleo! Vale a pena
sinalizar que, de um ponto de vista capitalista, o Rio de Janeiro, em
particular a cidade do Rio, está sendo transformada em cidade global pelos
investimentos diretos dos grande grupos, especialmente petroleiros. Como
enfrentar isso? Existe ampla coalizão de forças, hoje, pró-petróleo.
No debate energético e em sua
relação com a questão climática, importa observar de perto o papel do etanol
para carros de passeio, área em que o Brasil foi pioneiro. Antes de mais nada,
deve ser registrado aqui que a motivação inicial para desenvolver a tecnologia
e produção de etanol a partir da cana-de-açúcar não foi de ordem ambiental, mas
comercial. Devido à crise do aumento dos preços de petróleo nos anos 1970 do
século passado, que afetou enormemente o frágil equilíbrio das contas externas
brasileiras, o regime militar decidiu apostar num substituto viável à gasolina
para mover os carros e, com isso, dar condições de expansão para a indústria de
automóveis instalada no Brasil, importante setor de empuxe do então “milagre
econômico brasileiro” e, diga-se de passagem, berço do combativo movimento
sindical, do PT e da CUT.
O etanol foi importante nos anos 1980 e início dos 90, mas sofreu com a redução relativa dos preços do petróleo e, sobretudo, com a descoberta do petróleo na costa brasileira, permitindo reduzir a dependência de importações. O bom, em termos ambientais, foi a manutenção da mistura de etanol à gasolina – algo em torno a 20%, em média –, que tem claros impactos positivos nas emissões dos carros, especialmente nas cidades. Mas a invenção dos carros flex – movidos a gasolina, álcool ou com uma mistura dos dois –, no começo dos anos 2000, permitiu que a produção de etanol desse um grande salto, a ponto de o governo brasileiro começar alardear que tinha encontrado a fórmula ideal para enfrentar um dos vilões das emissões, a frota crescente de carros de passeio no mundo. Na verdade, o etanol e o biodiesel, como seu correlato, não passam de agronegócio, uma das mais importantes bases do desenvolvimento do Brasil emergente. Seu impacto ambiental, do ponto de vista de emissões, até pode ser positivo, mas seu impacto social é devastador. Isso me remete à próxima questão.
O etanol foi importante nos anos 1980 e início dos 90, mas sofreu com a redução relativa dos preços do petróleo e, sobretudo, com a descoberta do petróleo na costa brasileira, permitindo reduzir a dependência de importações. O bom, em termos ambientais, foi a manutenção da mistura de etanol à gasolina – algo em torno a 20%, em média –, que tem claros impactos positivos nas emissões dos carros, especialmente nas cidades. Mas a invenção dos carros flex – movidos a gasolina, álcool ou com uma mistura dos dois –, no começo dos anos 2000, permitiu que a produção de etanol desse um grande salto, a ponto de o governo brasileiro começar alardear que tinha encontrado a fórmula ideal para enfrentar um dos vilões das emissões, a frota crescente de carros de passeio no mundo. Na verdade, o etanol e o biodiesel, como seu correlato, não passam de agronegócio, uma das mais importantes bases do desenvolvimento do Brasil emergente. Seu impacto ambiental, do ponto de vista de emissões, até pode ser positivo, mas seu impacto social é devastador. Isso me remete à próxima questão.
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