sábado, 11 de janeiro de 2014

como criar as condições para a “Grande Transição”?

Cap. II
A questão do agronegócio
Conta-se que um chinês, respondendo a uma pergunta sobre os emergentes agrupados no BRIC – o bloco, ainda emergente em termos geopolíticos, formado por Brasil, Rússia, Índia e China –, afirmou que, sem dúvida, esses países tentavam embarcar e tomar o leme do navio do poder, mas estava difícil. Em todo caso, havia possibilidades, dado que a China poderia ser a indústria do mundo; a Índia, a prestadora de serviços; a Rússia, a petroleira; e o Brasil, a fazenda. Trágica, mas boa imagem! Lembro isso para destacar uma verdade: o Brasil hoje depende muito do agronegócio como força de sua presença no mundo. Claro que isso significa transformar em “vantagens comparativas” – segundo a regra pétrea da competição capitalista nos mercados – o enorme patrimônio natural de que o Brasil é dotado, mas que deve ser conservado para o equilíbrio ambiental do planeta como um todo. Se acrescentarmos ao agronegócio o extrativismo mineral, temos somado, nas tais commodities, uma dependência crescente das exportações brasileiras da natureza (terra + minas + água + sol), em última análise. Existe, sim, capital e trabalho, mas tributários da natureza. 

Ao menos na pauta de exportação, o Brasil claramente reprimariza a sua economia como estratégia de desenvolvimento. Nos últimos anos, tal dependência de produtos primários vem aumentando. Somados, só seis produtos primários (minério de ferro, soja, petróleo, carnes, açúcar de cana e café) chegam a mais de 44% da exportações brasileiras de janeiro a agosto de 2012 (fonte: O Globo, 15/10/12). Dizer que se trata de “extração” natural altamente tecnificada – no caso do agronegócio, uso de sementes transgênicas e raças melhoradas, maior consumo de agrotóxicos por hectare, muitas máquinas, aumento de produtividade – não resolve o fato de que estamos diante de um extrativismo baseado nas tais “vantagens comparativas”, destruidor da biodiversidade, de florestas, contaminador, produtor de alimentos processados de qualidade duvidosa e dependente de modernos latifundiários, parte da tradicional elite brasileira, vivendo nas cidades, ou de grandes grupos empresariais nada identificados com o mundo rural. Afinal, vantagens para quem? 

Estamos, na verdade, diante de uma bomba social e ambientalmente devastadora. São menos de 70 mil os grandes proprietários de terras, num universo de quase 4 milhões de proprietários rurais, controlando quase 200 milhões de hectares, 25% do território nacional, o equivalente a mais de 2.800ha cada um, em média. Diante deles, quase dois milhões de famílias sem terra e outros dois milhões com pouca terra. Existe negócio mais excludente? 

O agronegócio depende do controle da terra e da sua exploração livre de controle social e ambiental. O recente debate e luta em torno ao novo Código Florestal no Brasil é revelador do poder político do agronegócio. A “bancada ruralista” no Congresso Nacional tem poder de impor o que quer, tendo derrotado o Governo Dilma em todos os rounds. Isto num país onde os grandes proprietários rurais são 0,0... alguma coisa da cidadania!

É nesse ambiente que floresce o agronegócio, etanol de cana bem no centro, apesar do pouco peso nas relações externas até aqui (não é o caso do açúcar, a alternativa a produzir etanol, de que o Brasil goza de enorme vantagem comparativa). Estamos diante de um modelo de desenvolvimento da produção agrícola e pecuária que pouco espaço deixa aos agricultores familiares. Eles existem – e até em grande número. Resistem, apesar de tudo. 

Por conquista deles, existe hoje o Pronaf – Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar, basicamente na forma de crédito subsidiado, numa escala do mais precário ao mais viável economicamente. Esses créditos diferenciados começaram nos anos 1990, depois de grande mobilização. Com o Governo Lula e, agora, Dilma, essa linha de crédito público cresceu muito, chegando a mais de R$ 18 bilhões/ano. Também desde o Governo Lula está vigente uma política de compras oficiais pela Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) de produtos da agricultura familiar para os programas públicos de alimentos (asilos, centros de atenção especial etc.), com grande impacto econômico e social, sem dúvida. Foi instituída ainda a obrigatoriedade de comprar 1/3 dos alimentos para a merenda escolar (são 48 milhões de refeições gratuitas por dia nas escolas do país) da agricultura familiar da região. São medidas no sentido da “grande transformação”. Mas até onde estão mudando a agricultura brasileira? Basta lembrar aqui que o agronegócio merece mais de R$ 120 bilhões de crédito agrícola; são muitas vezes mais do que a agricultura familiar.

Mais um aspecto relevante dessa questão deve ser mencionado aqui: a reforma agrária. Depois do crescimento das lutas e de uma memorável campanha no início dos 1980, a reforma agrária entrou na agenda política. Desde a Nova República – o regime que fez a transição da ditadura para a democracia, instaurado em 1985 –, temos no Brasil ensaios de reforma agrária. A Constituição democrática de 1988 estabeleceu princípios legais para realizar a reforma agrária, por pressão popular e de movimentos sociais dos mais importantes do país, como o Movimento dos Sem Terra – MST. A realidade política do país, porém, é mais dura. Pouco se fez em termos de reforma agrária nestes anos. É duro dizer, mas nos governos petistas ficamos patinando, dando preferência ao crédito de apoio ao invés de um efetivo programa de desmonte da bomba antissocial do latifúndio predador social e ambiental. Enfim, fica claro que o agronegócio é parte do poder estabelecido, difícil de mudar numa perspectiva de bases mais democráticas, includentes e sustentáveis.

Pensar agricultura familiar, agroecologia e o direito humano ao alimento como pilares alternativos está na agenda de muitos sujeitos, sejam movimentos e organizações de agricultores, sejam entidades de cidadania e direitos que lutam por justiça social e já incorporam substantivamente a questão ambiental como marco redefinidor da própria luta por igualdade e participação. No entanto, há uma profunda assimetria de poder com o agronegócio, de visibilidade na agenda pública e de incidência nas políticas. Nunca é demais lembrar que a arquitetura política para acomodar contradições nos levou a ter dois ministérios: o Ministério da Agricultura, entregue ao agronegócio, e o Ministério do Desenvolvimento Agrário, próximo a movimentos sociais e organizações camponesas. 

Para a questão alimentar temos o Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar), órgão de assessoramento e monitoramento de políticas públicas, com maioria da sociedade civil em sua composição, talvez o melhor conselho dos muitos criados pelos governos petistas. Algumas conquistas foram feitas, como a já citada aquisição de alimentos da agricultura familiar pela Conab, a extensão da merenda escolar e a obrigatoriedade de 1/3 de alimentos que devem ser adquiridos da agricultura familiar da região. Tudo isso é possível, mas ocorrendo sob intensa disputa, onde os interesses do agronegócio frequentemente predominam.

Como criar as necessárias condições de transformação

Um primeiro aspecto a reconhecer aqui é o fato de que estamos diante de um Brasil que vem mudando. Não estamos mais naquela fase de capitalismo selvagem, da ditadura, sem contrapesos. Fizemos, sem dúvida, incríveis avanços sociais por meio de políticas ativas, como Bolsa Família (com apoio direto, em termos de renda, a mais de 13 milhões de famílias), aumento substancial do salário mínimo legal (de cerca de US$ 100 para mais de US$ 300), criação de milhões de empregos com direitos trabalhistas (algo como 15 milhões nos governos petistas), ampliação da cobertura previdenciária, expansão fenomenal do crédito para compra de bens de consumo e, sem dúvida, o controle da corrosiva inflação. Mas – isso também é forçoso reconhecer – fizemos sem mudar fundamentalmente a lógica do processo de desenvolvimento capitalista, sua estrutura social concentradora de ativos e sua base técnica industrial, produtivista e consumista, altamente predatória de recursos naturais, mercantilizando tudo, privatizando se necessário. O Brasil é um exemplo de social-democracia de bem com o capitalismo nos dias de hoje, num contexto em que o neoliberalismo e, agora, sua crise põem em questão a viabilidade de tal modelo, especialmente na Europa.

Como mudar um quadro assim? Na origem da recente “bonança” do Brasil está o movimento cidadão multifacetado e forte que impulsionou a democratização e que teve no PT a sua expressão política máxima, mas não a única. Sou dos que pensam que essa onda democratizadora está se rebentando e esgotando na praia. Não dá para esperar outra coisa da atual coalizão. Não vou entrar na análise específica de como o DNA político do PT mudou ao fazer aliança com os grandes grupos empresariais emergentes, em torno de um projeto de Brasil emergente. O fato político relevante é que a onda democratizadora, impulsionada mais pelas questões sociais que ambientais, está esgotando sua capacidade transformadora. Nova onda precisa ser reinventada, recriada.

Aí estamos diante de hipóteses e apostas políticas. Existem alternativas reais? Elas são viáveis? Que condições políticas precisam ser criadas? O bom é que cresce no Brasil a consciência ambiental. O quanto ela se alia à inevitável questão social, sem o que não há solução viável, ainda não está clara, ao menos no debate público, aquele que importa como ideário mobilizador para criar movimentos políticos capazes de realizar mudanças. Mas estamos longe de uma agenda coerente de mudanças viáveis. Temos ideias, mas elas são desarticuladas.

Na minha opinião, precisamos voltar às bases, fazer o que se fez na resistência e ao finalmente derrotar a ditadura. Trata-se de um trabalho de educação popular e cidadã, na visão libertária de Paulo Freire. Temos um enorme contingente da população “contaminada” pelo ideal do consumo, pois, afinal, é a primeira vez que o experimentam. Além do mais, é um grupo que busca a sua própria identidade emergente, por assim dizer, por meio de religiões pentecostais, muitas vezes. Que a religiosidade popular é um elemento fundamental sabemos há muito tempo. Mas agora enfrentamos religiões que não necessariamente são nossas aliadas, ao menos até aqui, no espectro político brasileiro. Como agir? Que papel devem desempenhar as organizações de cidadania ativa nesse particular? Ou outras entidades precisam ser inventadas? Que métodos políticos a inventar? Que pedagogia política?

O desafio maior para a democracia e a sustentabilidade, na perspectiva de uma transformação que importa, no Brasil, é conquistar corações e mentes para tal agenda. O imaginário mobilizador é o primeiro desafio. Precisamos ouvir, literalmente escutar, as ruas para entender e transformar as suas demandas. Nosso problema e maior desafio é de ordem cultural: falar para o que as pessoas sentem. Transformação só é possível com cidadania motivada e em ação.


(*) Sociólogo, diretor do Ibase

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