MANIFESTO
Incêndio nas favelas: o urbanismo da destruição
Incêndio nas favelas: o urbanismo da destruição
A cidade de São Paulo vive uma situação de repressão
crescente e constante nos últimos anos. O símbolo menos visível dessa
repressão, talvez, é o capital especulativo, ‘reproduzido por bancos,
empreiteiras e grandes corporações’.
Entendemos aqui repressão como qualquer ação que vise a
destruição da dignidade, dos direitos civis básicos e do direito a livre
organização, conforme ensina nossa própria Constituição. Repressão também é
expropriar, direta ou indiretamente, destruir casas, proibir comercio ambulante,
higienizar, através da expulsão da população pobre, as áreas centrais da
cidade, reintegrar a posse de prédios vazios com donos devedores, privar o
acesso a equipamentos públicos, cobrar por transporte publico e sem qualidade,
oferecer uma educação sucateada às classes sociais mais pobres, entre tantos
outros fatos inerentes a uma urbanização pautada não nos interesses sociais,
mas nos interesses econômicos de uma parcela da população que já detém a maior
parte da renda – ou seja, uma urbanização que mantém as coisas como estão.
As polícias, cumpridoras sanguinárias da lei e da ordem,
seguem execultando covardemente algumas formas de repressão acima citadas (vide
caso da comunidade Pinheirinho em São José dos Campos). Os governantes são
diretamente responsáveis, inclusive pelos incêndios criminosos que ultimamente
tem acometido as comunidades de trabalhadores pobres, as favelas, que, de tão
marginalizadas historicamente, hoje são entendidas no senso comum como sinônimo
de todas as coisas ruins que existem na metrópole.
Em
São Paulo, existem 1600 favelas onde vivem milhares de famílias. Histórias de
vida são reduzidas a pó a cada incêndio. Passam – se os anos, dezenas de
favelas pegam fogo por causas acidentais ou não, e o que se percebe algum tempo
depois (num espaço de dias, meses ou anos) é que essas áreas são destinadas ao
jogo sujo do capital especulativo, daqueles que não tem coragem de se expor,
mas que constroem condomínios de luxo ou equipamentos públicos que priorizam a
exclusão (vide reforma da praça Roosevelt). Tais áreas nunca são destinadas a
construção de moradia digna que possibilite a manutenção da população no local.
Essa, por sua vez, é enviada às periferias da
grande metrópole para que a sociedade não veja a degradação do ser humano, uma
vez que São Paulo, a locomotiva do Brasil, não pode demonstrar suas mazelas às
pessoas de bens que por ela transitam (vide a cracolândia, que há alguns meses
foi limpa com gás lacrimogêneo e bombas de efeito moral e que, pela falta de
qualquer projeto social, está de volta ao mesmo lugar e a todo vapor).
Estatisticamente, os incêndios nem
aumentaram, nem diminuíram: estão iguais, mantendo um ritmo sinistro de
exterminação de vidas. Favela do Pau Queimado, Favela do Canão, Favela do
Jaguaré, Favela do Piolho, Favela do Moinho e tantas outras mais incendiadas
por capatazes a mando dos grandes empresários da construção civil, que põem
fogo numa favela com a mesma tranquilidade com que acendem seus charutos.
A
imprensa noticiou que as empreiteiras e incorporadoras estão entre as maiores
doadoras para as campanhas eleitorais, tanto municipais, quanto estaduais e federais.
Entretanto, esta frase está incorreta. Estes grupos não doam, investem. E, como
todo investimento, querem retorno, mesmo que seja à custa da vida humana:
reintegrações de posse, remoções, parques lineares (com o discurso ambiental
por trás), enchentes e, o elemento que tem se notado com mais frequência , os
incêndios em favelas. O poder público é o sócio majoritário da perversidade da
lógica do mercado, num jogo em que se aproveitam da ocupação de espaços ao
longo de décadas e da construção de infraestrutura mínima de vida, para depois
agir com formas diretas e indiretas de despejos (pelo aumento do custo de vida
nessas regiões), atendendo as necessidades insaciáveis da iniciativa privada.
São nesses momentos que as mãos invisíveis do mercado têm cores bem definidas.
A
crueldade dessa prática se revela ao notarmos que as favelas incendiadas localizam-se,
em sua imensa maioria, em áreas de valorização imobiliária, em nítido contraste
com a ausência de incêndios em favelas que se encontram em regiões onde a
especulação ainda não chegou – nas periferias da cidade, que é onde o poder
público quer esconder aqueles que teimam em morar em lugar que não foi “feito
para pobre”. O cinismo e o escárnio tomam conta da explicação oficial: o tempo
seco. Seriam as periferias de São Paulo mais úmidas que as áreas centrais? Sem
dúvida, haverá aqueles que buscarão modelos científicos que legitimem mais uma
faceta da violência cotidiana contra a pobreza.
Não é segredo que tais incêndios são criminosos. Contudo,
ainda assim, o poder público insiste em não investigar seriamente as causa que
transformam uma imensidão de histórias de vida em pó. Tudo ocorre com muita
naturalidade: o Corpo de Bombeiros, parte constituinte da Polícia Militar,
chega nas ocorrências de incêndio em favela quase sempre com muito atraso, usa
seus equipamentos para conter o fogo e, sem que isso seja de sua competência,
avalia a possível causa do incêndio. Ao passo que, quando a Defesa Civil chega,
não há que fazer nenhum trabalho, afinal, a causa já foi apurada.
Fiação elétrica, o famoso gato, entra como principal
vilão de uma cidade com combustão espontânea, seguido por descuidos e conflitos
domésticos, afinal, só mesmo em casa de pobre panela de pressão pode virar
bomba nuclear e um casal-bomba quer destruir a própria residência construída
com tanto esforço.
Assim, se o Estado, por tudo que já foi colocado neste
manifesto, não tem nenhum interesse em buscar as raízes destes incêndios, a
sociedade civil está fazendo o papel de denunciá-los e exige explicações.
Com esse manifesto queremos convidar a
todos, professores (universitários, da rede publica, da rede particular),
estudantes (idem), moradores de comunidades que sofrem a repressão do capital
selvagem, cidadãos comuns, para pensar em modelos de urbanização que confrontem
essa fome insaciável da especulação imobiliária e financeira; pensar em
propostas – e não somente fazer denuncias – que respeitem a autonomia e a
historia de vida de milhares de pessoas que, desamparadas pelo poder público e
impelidas pela necessidade, em um enorme exemplo de auto-organização e de
coletividade, constroem comunidades complexas, com relações de convivência
respeitosa e que nada mais querem do que viver na própria moradia, ter acesso à
cidade e serem tratadas com dignidade e respeito pela mesma sociedade que as
criou e da qual fazem parte. “Reconhecer
o direito de permanência dessas comunidades é reconhecer o direito à sua
própria história.”
Alfio Bogan - Físico e Professor.
o texto apresentado foi transcrito do link https://umhistoriador.wordpress.com/tag/higienizacao/
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