Jessé
Souza lembra que se quisermos ir além das aparências, devemos ir além do que as
instituições 'dizem de si mesmas'.
por Tarso Genro / 4-07-2016
O admirável livro "O Continente
Submerso" (1988) de Leo Gilson Ribeiro, autor que já tinha publicado em
1964, um outro grande livro denominado "Os cronistas do absurdo -Kafka,
Brecht, Büchner, Ionesco"- traz "perfis e depoimentos" de
grandes escritores da América Latina, independentemente das suas posições
políticas pessoais. São posições verbalizadas ou escritas que -pela sua
grandeza literária e humana- de algum modo contribuem para responder a uma
pergunta axial, que ainda nos desafia: "para onde vai a América
Latina?". Para onde vai nossa democracia, para onde vão as nossas
experiências de luta, até onde nosso continente aguenta a dependência subordinada,
gerada por uma dívida pública nascida de décadas de apropriação privada do
Estado?
Lá estão Borges, Vargas Llosa, Juan
Rulfo, Carpentier, Cabrera Infante, Octávio Paz, Neruda, Manuel Scorza, entre
outros grandes do Continente. Livro admirável, porque acima das contingências
políticas que viveram cada um desses autores -alguns em conflito com a
Revolução Cubana, outros com as ditaduras ou governos oligárquico-autoritários-
Leo Gilson conseguiu extrair de cada biografia literária ou de obras desses
autores, algo de grandioso para a questão da nossa cultura. E, em consequência,
para a questão democrática latino-americana, que se aguçou fortemente nos
últimos 50 anos.
Quando Leo Gilson trata de Alejo
Carpentier, depois de referi-lo como um autor que acumula séculos, "talvez
milênios mesmo, de cultura" (a semelhança do mexicano Octávio Paz),
lembra uma citação de Goethe, feita por Carpentier (extraída do Fausto)
destinada a situar o nascimento recente do continente: "Acabamos de chegar
e não sabemos como foi. Não nos pergunteis de onde viemos: baste-nos saber que
aqui estamos". E estamos cada vez mais dramaticamente acossados, pelas
novas formas de império e por novos protocolos de dominação.
De certa forma, a resposta de
Carpentier resume a "questão democrática" que estamos vivendo hoje no
Brasil e no Continente. Nos países da América Latina, a crise da democracia
-diferentemente dos países que amadureceram revoluções burguesas cujas
democracias estão definhando- expressa-se como verdadeiro parto. É um
"nascimento" democrático, em confronto com a decadência definitiva do
liberalismo político tardio. Aqui, portanto, não se trata de uma reforma ou do
"renascimento" democrático, mas do parto de novas formas
democráticas, em condições históricas adversas, dentro de uma revolução que,
nos seus lugares de origem, não renovou nem criou novas instituições em
mais de duzentos anos de vida.
Aquela frase de Saint-Just sobre a
Revolução Francesa, citada por um personagem de Manoel Scorza, bem serviria
para interpretar o desejo de democracia e de efetividade dos direitos,
que permeia a nossa questão democrática: "A Revolução só deve deter-se na
felicidade". Tomando historicamente a felicidade coletiva como
"plenitude democrática" (não um remoto socialismo) pode-se dizer
que, enquanto nos países de democracia política madura, o que bloqueia a
felicidade é o "ajuste" (que pode ser feito sem alterar as velhas
instituições políticas) aqui, o que bloqueia a democracia é a
radicalização da "exceção". Dentro da crise, a "exceção" se
completa, para poder promover o "ajuste" por fora da instituições
tradicionais do Estado de Direito.
Em 2008 o grande jurista Luigi
Ferrajoli -teórico do direito e da democracia como são os verdadeiros
juristas- publicou o seu livro "Democracia e Garantismo" (Editorial
Trotta, Madrid), através do qual reúne seu legado teórico e doutrinário, onde
constatando a insuficiência da formas jurídicas e políticas atuais do Estado
Constitucional, propugna por novas instituições e técnicas de garantia dos
direitos fundamentais, "que ainda estamos longe de ter elaborado e
assegurado". A democracia constitucional, para Ferrajoli, é
fruto de uma mudança radical de paradigmas sobre o papel do direito nos últimos
50 anos, que ainda não tomamos consciência suficientemente. Os dirigentes
nacionais e regionais da OAB, especialmente o seu Presidente do Conselho
Federal, em regra deveriam ser "apenados" por assembleias gerais de
advogados, nos Estados, para uma leitura compulsória desta obra.
A "exceção" no Brasil, por
exemplo -poderiam se dar conta eles- se infiltra no tecido constitucional com
um apoio social bastante amplo, pelos "resultados" que oferece, imediatamente,
na luta contra a corrupção. O seu objeto, porém, não é a luta contra a
corrupção, mas estabelecer um nexo, entre a corrupção e a necessidade do
"ajuste", ele mesmo a suprema corrupção das funções do públicas
do Estado. E o "ajuste" não pode ser feito sem esta decomposição, que
passa pela manutenção do sistema político, ofertante gracioso de uma
Confederação de Investigados e Denunciados, dispostos -pela sua situação penal
precária- a cumprirem a trajetória do "ajuste".
Isso,
certamente, não poderia ser feito sem um controle da opinião pela mídia oligopolizada,
numa democracia em que as amplas massas de cidadãos e famílias estão no limite
da pobreza e, se perderem algo do seu poder aquisitivo, chegam à miséria. A
mídia oligopolizada, antiesquerda, antiPT e antidemocrática, encarrega-se de instalar
um Tribunal Político, que precede as condenações e absolvições penais, as prisões
e conduções coercitivas e a manutenção indefinida de prisões preventivas. Estas,
mantidas sem condenação -para buscar delações premiadas e manipuladas- são o
atestado mais evidente de uma "exceção", não juridicamente declarada,
mas de fato instalada.
O que
deve nos opor à "Síndrome de Moro", que afeta o nosso Estado
Constitucional, não é o seu resultado contingente de ataque à corrupção, que é
sempre bem-vindo e sempre terá alguns resultados positivos, ainda que limitados
a um período e a algumas facções sociais e políticas. O que deve nos opor
a esta doença da democracia, semelhante ao que ocorreu na República de Weimar,
que inclusive se fez à luz da indiferença de determinados setores democráticos
covardes é a sua manipulação, falta de profundidade e instrumentalização para
fins políticos imediatos e eleitoreiros.
Na verdade, estes processos
anticorrupção estão sendo feitos dentro da dialética "amigo-inimigo"
(da formulação pró-nazista de Schmit), distantes das formulações de
Ferrajoli, pela instalação de novos paradigmas para afirmação dos direitos
fundamentais. Por isso é golpe, não revolução moralizadora, o que está
ocorrendo no país. E este, assim deve ser tratado, pelos verdadeiros
democratas, socialistas, centristas democráticos ou quaisquer outros que
defendem -para hoje- a democracia social, contra a barbárie
neoliberal. Jessé Souza, num livro que celebra a obra e a vida do grande
Raymundo Faoro -que felizmente não acompanha os procedimentos dos seus
sucessores atuais- lembra que, se quisermos ir além das aparências,
devemos ir além do que as instituições "dizem de si mesmas". E
o que a democracia diz de "si mesma", hoje, é decidido não pelo
contencioso político democrático, na esfera pública da Constituição, mas
pelo oligopólio da mídia, que percorre o caminho do "ajuste", como
uma versão do "Sendero Luminoso" do rentismo liberal.
Alfio Bogdan - Físico e Professor
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