quinta-feira, 9 de novembro de 2017

ADI - Escola sem Partido

REQTE.(S)           : CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES EM ESTABELECIMENTOS DE ENSINO - CONTEE
ADV.(A/S)           : ADAILTON DA ROCHA TEIXEIRA E OUTRO(A/S)
INTDO.(A/S)         : ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE ALAGOAS
ADV.(A/S)           : SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS
INTDO.(A/S)         : GOVERNADOR DO ESTADO DE ALAGOAS
ADV.(A/S)           : SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS
ADV.(A/S)           : JOSÉ GERALDO SANTANA DE OLIVEIRA
Decisão
      Ementa: Direito constitucional. Ação direta de inconstitucionalidade. Programa Escola Livre. Lei  estadual. Vícios formais (de competência e de iniciativa) e afronta ao pluralismo de ideias. Cautelar  deferida.
       I. Vícios formais da Lei 7.800/2016 do Estado de Alagoas:
   1. Violação à competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (CF, art. 22, XXIV): a liberdade de ensinar e o pluralismo de ideias são princípios e diretrizes do sistema (CF, art. 206, II e III);
  2. Afronta a dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação: usurpação da competência da União para estabelecer normas gerais sobre o tema (CF, art. 24, IX e § 1º);
      3. Violação à competência privativa da União para legislar sobre direito civil (CF, art. 22, I): a lei impugnada prevê normas contratuais a serem observadas pelas escolas confessionais;
      4. Violação à iniciativa privativa do Chefe do Executivo para deflagrar o processo legislativo (CF, art. 61, § 1º, “c” e “e”, ao art. 63, I): não é possível, mediante projeto de lei de iniciativa parlamentar, promover a alteração do regime
jurídico aplicável aos professores da rede escolar pública, a alteração de atribuições de órgão do Poder Executivo e prever obrigação de oferta de curso que implica aumento de gastos.
      II. Inconstitucionalidades materiais da Lei 7.800/2016 do Estado de Alagoas:
      5. Violação do direito à educação com o alcance pleno e  emancipatório que lhe confere a Constituição. Supressão de domínios inteiros do saber do universo escolar. Incompatibilidade entre o suposto dever de neutralidade,  previsto na lei, e os
princípios constitucionais da liberdade de ensinar, de aprender e do pluralismo de ideias (CF/1988, arts. 205, 206 e 214).
      6. Vedações genéricas de conduta que, a pretexto de evitarem a doutrinação de alunos, podem gerar a  perseguição de professores que não compartilhem das visões dominantes. Risco de aplicação seletiva da lei, para fins persecutórios. Violação ao
princípio da proporcionalidade (CF/1988, art. 5º, LIV, c/c art. 1º).
      7. Plausibilidade do direito e perigo na demora  reconhecidos. Deferimento da cautelar.
      Breve síntese do caso
    1. Trata-se de duas ações diretas de inconstitucionalidade – ADI 5537 e ADI 5580 – propostas pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimento de Ensino – CONTEE e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação – CNTE,
respectivamente, em que se pleiteia a declaração da inconstitucionalidade da Lei 7.800, de 05 de maio de 2016, do Estado de Alagoas. A referida norma fundou, no sistema educacional de âmbito estadual, o programa Escola Livre, prevendo:
    “Art. 1º - Fica criado, no âmbito do sistema estadual de ensino, o Programa “Escola Livre”, atendendo os seguintes princípios:
    I – neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado;
    II – pluralismo de ideias no âmbito acadêmico;
    III – liberdade de aprender, como projeção específica, no campo da educação, da liberdade de consciência;
    IV – liberdade de crença;
    V – reconhecimento da vulnerabilidade do educando como parte mais fraca na relação de aprendizado;
    VI – educação e informação do estudante quanto aos direitos compreendidos em sua liberdade de consciência e de crença;
    VII – direito dos pais a que seus filhos menores recebam a educação moral livre de doutrinação política, religiosa ou ideológica;
    Art. 2º - São vedadas, em sala de aula, no âmbito do ensino regular no Estado de Alagoas, a prática de doutrinação política e ideológica, bem como quaisquer outras condutas por parte do corpo docente ou da administração escolar que imponham ou
induzam aos alunos opiniões político-partidárias, religiosa ou filosófica.
    §1º Tratando-se de disciplina facultativa em que sejam veiculados os conteúdos referidos na parte final do caput deste artigo, a frequência dos estudantes dependerá de prévia e expressa autorização dos seus pais ou responsáveis.
    §2º As escolas confessionais, cujas práticas educativas sejam orientadas por concepções, princípios e valores morais, religiosos ou ideológicos, deverão constar expressamente no contrato de prestação de serviços educacionais, documento este que será
imprescindível para o ato da matrícula, sendo a assinatura deste a autorização expressa dos pais ou responsáveis pelo aluno para veiculação de conteúdos identificados como os referidos princípios, valores e concepções.
    §3º- Para os fins do disposto nos Arts. 1º e 2º deste artigo, as escolas confessionais deverão apresentar e entregar aos pais ou responsáveis pelos estudantes, material informativo que possibilite o conhecimento dos temas ministrados e dos enfoques
adotados.
    Art. 3º - No exercício de suas funções, o professor:
    I – não abusará da inexperiência, da falta de conhecimento ou da imaturidade dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para qualquer tipo de corrente específica de religião, ideologia ou político-partidária;
    II – não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas;
    III – não fará propaganda religiosa, ideológica ou político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos ou passeatas;
    IV – ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa, com a mesma profundidade e seriedade, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas das várias concorrentes a respeito, concordando
ou não com elas;
    V – salvo nas escolas confessionais, deverá abster-se de introduzir, em disciplina ou atividade obrigatória, conteúdos que possam estar em conflito com os princípios desta lei.
    Art. 4º - As escolas deverão educar e informar os alunos matriculados no ensino fundamental e no ensino médio sobre os direitos que decorrem da liberdade de consciência e de crença asseguradas pela Constituição Federal, especialmente sobre o
disposto no Art. 3º desta Lei.
    Art. 5º - A Secretaria Estadual de Educação promoverá a realização de cursos de ética do magistério para os professores da rede pública, abertos à comunidade escolar, a fim de informar e conscientizar os educadores, os estudantes e seus pais ou
responsáveis, sobre os limites éticos e jurídicos da atividade docente, especialmente no que se refere aos princípios referidos no Art. 1º desta Lei.
    Art. 6º - Cabe à Secretaria Estadual de Educação de Alagoas e ao Conselho Estadual de Educação de Alagoas fiscalizar o exato cumprimento desta lei.
    Art. 7º - Os servidores públicos que transgredirem o disposto nesta Lei estarão sujeitos a sanções e as penalidades previstas no Código de Ética Funcional dos Servidores Públicos e no Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civil do Estado de
Alagoas.” (Grifou-se).
    2. As Requerentes alegam que a norma atacada viola, no aspecto formal, a competência privativa da União para dispor sobre diretrizes e bases da educação (CF, art. 22, XXIV); e, no aspecto material, a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), os
valores sociais do trabalho (CF, art. 1º, IV), o pluralismo político (CF, art. 1º, V), a sociedade livre, justa e solidária (CF, art. 3º, I), o direito à livre manifestação do pensamento (CF, art. 5º, IV) e da atividade intelectual (CF, art. 5º, IX), o
direito ao pleno desenvolvimento da pessoa humana e ao seu preparo para o exercício da cidadania (CF, art. 205), a liberdade de ensinar e aprender (CF, art. 206, II), o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (CF, art. 206, IV), a valorização
dos profissionais da educação escolar (CF, art. 206, V), a gestão democrática do ensino público (CF, art. 206, VI), o padrão de qualidade social do ensino (CF, art. 206, VII) e a autonomia didático-científica das universidades (CF, art. 207).
    3. Com base em tais argumentos e, ainda, nos prejuízos que a imediata aplicação da norma pode gerar à educação, aos alunos e aos professores, as postulantes requerem o deferimento de medida cautelar determinando a imediata suspensão dos efeitos da
lei.
    4. Apliquei o rito do artigo 10, §1º, da Lei 9.868/1999 e determinei a oitiva da Assembleia do Estado de Alagoas, do Exmo. Sr. Governador do Estado de Alagoas, do Exmo. Sr. Advogado-Geral da União e do Exmo. Sr. Procurador-Geral da República.
    5. O Governador do Estado de Alagoas sustentou a inconstitucionalidade da Lei 7.800/2016, por tratar de matéria de iniciativa privativa pelo Chefe do Poder Executivo, bem como por estabelecer restrições excessivas à liberdade de ensino.
    6. A Assembleia Legislativa do Estado de Alagoas defendeu a validade da norma. Do ponto de vista formal, afirmou que o Estado dispõe de competência concorrente para legislar sobre educação, cultura e ensino. No aspecto material, justificou a norma
com base na necessidade de vedar a prática de doutrinação política e ideológica e quaisquer condutas, por parte do corpo docente ou da administração escolar, que imponham ou induzam os alunos a opiniões político-partidárias, religiosas e/ou filosóficas,
de forma a proteger a sua liberdade de consciência.
    7. O Advogado-Geral da União manifestou-se, originalmente, pelo não conhecimento da ADI 5537, em razão da ilegitimidade ativa da requerente, que não congregaria em seu quadro um mínimo de três federações, bem como pela inexistência de poderes
específicos para a impugnação da Lei 7.800/2016 em sede de ação direta de inconstitucionalidade. No mérito, pronunciou-se pelo deferimento da medida cautelar, ao fundamento de que: (i) teria havido usurpação da competência legislativa da União para
editar normas gerais sobre educação (CF, arts. 22, XXIV, e 24, IX); e (ii) haveria colisão frontal entre a norma impugnada e o princípio do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (CF, art. 206, III).
    8. A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimento de Ensino – CONTEE apresentou, nos autos da ADI 5537, procuração com poderes específicos para a sua propositura e o quadro de federações congregadas, superando os óbices processuais
levantados pelo Advogado-Geral da União para o processamento da ação.
    9. O Procurador-Geral da República manifestou-se pelo deferimento da liminar e pela procedência do pedido, por entender que: (i) houve vício de iniciativa por parte da Assembleia Legislativa do Estado de Alagoas ao legislar sobre matéria de
iniciativa do Chefe do Executivo (CF, art. 61, §1º, II, ‘c’ e ‘e’), porque a norma impôs à Secretaria de Estado de Educação obrigações que modificaram suas atribuições e geraram impactos financeiros e orçamentários; (ii) houve usurpação de competência
privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (CF, arts. 22, XXIV, e 24, IX); (iii) a norma impugnada afronta os princípios gerais editados pela União na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e a liberdade
constitucional de ensino, por suprimir a manifestação e discussão de tópicos inteiros da vida social.
    É o relatório.
Apreciação do pedido de cautelar
    12. Estão presentes, a meu ver, os requisitos de plausibilidade jurídica e de perigo na demora que recomendam o deferimento da cautelar para suspender os efeitos da Lei 7.800/2016 em sua integralidade. O perigo na demora é indiscutível, uma vez que
a norma encontra-se em vigor, podendo ensejar a qualquer tempo a persecução disciplinar de professores.
    13. A plausibilidade do direito invocado, por sua vez, envolverá o exame: (i) da competência legislativa da União para dispor sobre educação (CF, art. 22, XXIV, e art. 24, IX); (ii) da competência privativa da União para dispor sobre direito civil
(art. 22, I, CF/1988); (iii) da iniciativa privativa do Executivo para propor projeto de lei sobre regime jurídico de servidor público, bem como sobre organização e atribuições de órgãos do Poder Executivo (CF/1988, art. 61, §1º, II, “c” e “e” art. 63,
I); (iv) do teor do direito à educação, tal como previsto na Constituição (CF/1988, arts. 205, 206 e 214); e (v) do respeito ao princípio da proporcionalidade, em sua vertente de adequação entre meios e fins (CF/1988, art. 5º, LIV, e 1º).
    I. A competência legislativa da União para dispor sobre educação (CF, art. 22, XXIV, e art. 24, IX)
    14. No que se refere ao poder de legislar sobre educação, a Constituição Federal estabelece: (i) a competência privativa da União para dispor sobre diretrizes e bases da educação nacional (CF/1988, art. 22, XXIV), bem como (ii) a competência
concorrente da União e dos Estados para tratar dos demais temas relacionados à educação que não se incluam no conceito de diretrizes e bases (CF/1988, art. 24). Confiram-se os pertinentes dispositivos constitucionais:
    Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
    [...].
    XXIV - diretrizes e bases da educação nacional;
    Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito  Federal legislar concorrentemente sobre:
    [...].
    IX – educação, cultura, ensino, desporto, ciência,  tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação;
    15. A Constituição explicita, ainda, como se dá a distribuição da competência legislativa concorrente, ao dispor:
    Art. 24. [...].
    § 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
    § 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.
    § 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.
    § 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário. (Grifou-se).
    16. Assim, em matéria de diretrizes e bases da educação nacional, há competência normativa privativa da União; ao passo que, nos demais temas pertinentes à educação, haverá competência concorrente entre a União e os Estados. No último caso, de
competência concorrente, caberá à União dispor sobre as normas gerais aplicáveis à educação, ao passo que caberá aos Estados tão-somente complementar tais normas.[1]
    1. Violação à competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases: competência para dispor sobre a liberdade de ensinar e sobre a promoção humanística do país (CF, art. 22, XXIV)
    17. A competência privativa da União para dispor sobre as “diretrizes” da educação implica o poder de legislar, com exclusividade, sobre a “orientação” e o “direcionamento” que devem conduzir as ações em matéria de educação. Já o poder de tratar das
“bases” da educação refere-se à regulação, em caráter privativo, sobre os “alicerces que [lhe] servem de apoio”, sobre os elementos que lhe dão sustentação e que conferem “coesão” à sua organização[2].
    18. Portanto, legislar sobre diretrizes e bases significa dispor sobre a orientação, sobre as finalidades e sobre os alicerces da educação. Ocorre justamente que a liberdade de ensinar e o pluralismo de ideias constituem diretrizes para a
organização da educação impostas pela própria Constituição. Assim, compete exclusivamente à União dispor a seu respeito. O Estado não pode sequer pretender complementar tal norma. Deve se abster de legislar sobre o assunto. Confira-se:
    Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
          [...].
    II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
    III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; [...]. (Grifou-se).
    19. Do mesmo modo, não há dúvida de que a regulamentação do tipo de educação apto a gerar “o pleno desenvolvimento da pessoa” e a “promoção humanística do país” integra o conteúdo de “diretriz da educação nacional” e, portanto, constitui competência
normativa privativa da União. É intuitivo, ainda, que a supressão de campos inteiros do saber da sala de aula desfavorece o pleno desenvolvimento da pessoa.
    20. Há, portanto, plausibilidade na alegação de violação da competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação, uma vez que os Estados não detêm competência legislativa – nem mesmo concorrente – para dispor sobre
princípios que integram as diretrizes do sistema educacional, como se infere do teor expresso do art. 22, XXIV, CF/1988. Mas não é só.
    2. Violação à competência legislativa concorrente entre União e Estados para legislar sobre educação: competência da União para estabelecer normas gerais (CF, art. 24, IX § 1º)
    21. Ainda que se reconhecesse que o Estado tem de competência para dispor sobre a liberdade de ensinar (o que não me parece ser o caso, como já exposto), o exercício de tal competência, por meio da norma impugnada, teria deixado de observar os
limites determinados pela Constituição. É que, em matéria sujeita à competência legislativa concorrente, como já mencionado, cabe à União dispor sobre normas gerais, ao passo que cabe aos Estados dispor sobre questões residuais de interesse específico
do ente da federação, desde que, ao tratar do tema, observe as normas gerais ditadas pela União.
    22. Ora, a Lei 9.394/1996 (“Lei de Diretrizes e Bases de Educação”) – norma geral em matéria de educação – previu que a educação deve se inspirar “nos princípios da liberdade” e ter por finalidade “o pleno desenvolvimento do educando” e “seu preparo
para o exercício da cidadania”. Determinou, ainda, que o ensino deve ser ministrado com respeito à “liberdade de aprender e ensinar”, ao “pluralismo de ideias e concepções pedagógicas” e com “apreço à tolerância” (arts. 2º e 3º, II, III e IV).
    23. A Lei 7.800/2016 do Estado de Alagoas, muito embora tenha reproduzido parte de tais preceitos, determinou que as escolas e seus professores atendessem ao “princípio da neutralidade política e ideológica”. A ideia de neutralidade política e
ideológica da lei estadual é antagônica à de proteção ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e à promoção da tolerância, tal como previstas na Lei de Diretrizes e Bases.
    24. A imposição da neutralidade – se fosse verdadeiramente possível – impediria a afirmação de diferentes ideias e concepções políticas ou ideológicas sobre um mesmo fenômeno em sala de aula. A exigência de neutralidade política e ideológica
implica, ademais, a não tolerância de diferentes visões de mundo, ideologias e perspectivas políticas em sala. Veja-se que a questão não escapou à percepção do Ministério da Educação, que observou, acerca desta exigência:
    "O Ministério da Educação entende que, ao definir a neutralidade como um princípio educacional, o indigitado Projeto de Lei contradiz o princípio constitucional do pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, uma vez que tal pluralidade efetiva-se
somente mediante o reconhecimento da diversidade do pensamento, dos diferentes saberes e práticas.
    O cerceamento do exercício docente, portanto, fere a Constituição brasileira ao restringir o papel do professor, estabelecer a censura de determinados conteúdos e materiais didáticos, além de proibir o livre debate no ambiente escolar. Da mesma
forma, esse cerceamento pedagógico impede o cumprimento do princípio constitucional que assegura aos estudantes a liberdade de aprender em um sistema educacional inclusivo." (Grifou-se).
    25. Na mesma linha, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação alertou para o fato de que o projeto de lei violava a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, esclarecendo:
    "4.1. O Projeto de Lei contraria princípios legais, políticos e pedagógicos que orientam a política educacional brasileira, que no processo de consolidação da democracia. apontam para a autonomia dos Sistemas de Ensino na elaboração dos projetos
politico pedagógicos, a liberdade de ensinar e aprender, o pluralismo de ideias e concepções, a contextualização histórico, político e social do conhecimento, a gestão democrática da escola, a valorização da diversidade humana e a inclusão escolar.
    4.2. Ao definir a neutralidade como um princípio educacional, o Projeto de Lei contradiz o princípio constitucional do pluralismo de ideias e concepções pedagógicas uma vez que tal pluralidade efetiva-se somente mediante o reconhecimento da
diversidade do pensamento, dos diferentes saberes e práticas. O cerceamento do exercício docente, portanto, fere a Constituição brasileira ao restringir o papel do professor, estabelecer a censura de determinados conteúdos e materiais didáticos, além de
proibir o livre debate no ambiente escolar. Da mesma forma, esse cerceamento pedagógico impede o cumprimento do princípio constitucional que assegura aos estudantes a liberdade de aprender em um sistema educacional inclusivo.
    4.3. A contrariedade desse Projeto de Lei também está na afirmação de que a educação moral e prerrogativa dos pais, ignorando o Art. 205 da Constituição Federal que determina a educação dever do Estado e da família, em colaboração com a sociedade,
sem distinguir competências exclusivas dos pais e da escola, não separando as diversas dimensões do processo educativo, que envolve apreensão de conhecimentos, a construção de valores e o desenvolvimento do pensamento crítico.
    4.4. O argumento explicitado no documento de que existem professores que impõem ideologias e induzem os estudantes a um pensamento único, usado como justificativa para suposta neutralidade educacional, na verdade, trata-se de uma deturpação da
pluralidade presente no processo de construção de conhecimento que historicamente esteve presente nos espaços educacionais. Tal argumento também se propõe a incriminar os professores que manifestam posicionamentos presentes na sociedade, quando a
diversidade de concepções integra o desenvolvimento acadêmico social cultural dos estudantes.
    4.5. Diante do exposto, considera-se que o Projeto de Lei diverge das Diretrizes Educacionais brasileiras estabelecidas pelo CNE, da LDB, do PNE e da Constituição Federal." (Grifou-se).
    26. Desse modo, ainda que a questão atinente à liberdade de ensinar e ao pluralismo de ideias pudesse ser objeto da competência estadual concorrente para legislar, há plausibilidade na alegação de que o Estado, ao exercê-la, usurpou a competência da
União para legislar sobre normas gerais, na medida em que, a pretexto de complementar as normas nacionais, estampadas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, regulou a questão de forma conflitante com o que disse a LDB, em evidente violação a seus
preceitos. Ora, a competência estadual para suplementar as normas gerais da União não abrange o poder de contrariá-las.
    II. Violação da competência privativa da União para legislar sobre direito civil (CF, art. 22, I)
    27. A lei alagoana determinou, ainda, em seu art. 2º, §2º, que as escolas confessionais cujas práticas forem orientadas por valores morais, religiosos ou ideológicos devem inserir no contrato de prestação de serviços educacionais informação a tal
respeito e previu, expressamente, que a assinatura do pertinente contrato configura a autorização dos pais para tal, sendo, portanto, condição para a veiculação dos referidos conteúdos. Veja-se:
    “Art. 2º São vedadas, em sala de aula, no âmbito do ensino regular no Estado de Alagoas, a prática de doutrinação política e ideológica, bem como quaisquer outras condutas por parte do corpo docente ou da administração escolar que imponham ou
induzam aos alunos opiniões político-partidárias, religiosa ou filosófica.
    [...]
    § 2º As escolas confessionais, cujas práticas educativas sejam orientadas por concepções, princípios e valores morais, religiosos ou ideológicos, deverão constar expressamente no contrato de prestação de serviços educacionais, documento este que
será imprescindível para o ato da matrícula, sendo a assinatura deste a autorização expressa dos pais ou responsáveis pelo aluno para veiculação de conteúdos identificados como os referidos princípios, valores e concepções.” (Grifou-se).
    28. Ocorre justamente que constitui competência privativa da União legislar sobre direito civil (CF/ 1988, art. 22, I), matéria que abrange as normas que disciplinam os contratos, tal como o faz o art. 2º, §2º, da Lei 7.800/2016. Há plausibilidade,
portanto, na alegação de inconstitucionalidade do art. 2º, §2º, da Lei estadual 7.800/2015 também por este fundamento.
    III. Violação à iniciativa privativa do Executivo para dispor sobre regime jurídico de servidor público, sobre organização e atribuições de órgãos do Poder Executivo (CF, art. 61, §1º, II, “c” e “e”, e art. 63, I)
    29. Como se nota, ademais, a norma, que foi produzida por iniciativa parlamentar[3], estabelece uma série de comportamentos a serem observados pelos professores da rede estadual de ensino e veda outros tantos, sob pena de serem processados e punidos
disciplinarmente (art. 7º c/c arts. 1º, 2º e 3º). Interfere, portanto, com o regime jurídico dos servidores do Executivo, em desrespeito à iniciativa reservada ao Chefe do Executivo para encaminhar projetos de lei sobre a matéria (CF/1988, art. 61, §1º,
II, “c”), tal como reiteradamente afirmado pelo Supremo Tribunal Federal. Veja-se: ADI 2.300, rel. Min. Teori Zavascki; ADI 2.329, rel. Min. Cármen Lúcia; ADI 3.061, rel. Min. Ayres Britto.
    30. Não bastasse isso, os arts. 5º e 6º da lei determinam que a Secretaria Estadual de Educação – órgão do Poder Executivo – realize cursos de ética do magistério para professores, estudantes e responsáveis e imputa a tal secretaria e, ainda, ao
Conselho Estadual de Educação de Alagoas, a atribuição de fiscalizar o cumprimento da lei. Confiram-se os dispositivos da lei alagoana:
    “Art. 5º- A Secretaria Estadual de Educação promoverá a realização de cursos de ética do magistério para os professores da rede pública, abertos à comunidade escolar, a fim de informar e conscientizar os educadores, os estudantes e seus pais ou
responsáveis, sobre os limites éticos e jurídicos da atividade docente, especialmente no que se refere aos princípios referidos no Art. 1º desta Lei.
    Art. 6º- Cabe a Secretaria Estadual de Educação de Alagoas e ao Conselho Estadual de Educação de Alagoas fiscalizar o exato cumprimento desta lei.
    Art. 7º- Os servidores públicos que transgredirem o disposto nesta Lei estarão sujeitos a sanções e as penalidades previstas no Código de Ética Funcional dos Servidores Públicos e no Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civil do Estado de
Alagoas.” (Grifou-se).
    31. Assim, a lei alterou o regime jurídico aplicável a servidores públicos, dispôs sobre atribuições de órgão do Poder Executivo e criou obrigação – oferta de curso em favor de professores, alunos, pais e responsáveis – que implica aumento de
gastos. Há, portanto, plausibilidade jurídica na alegação de violação ao art. 61, § 1º, “c” e “e”, ao art. 63, I, CF/1988 e, ainda, ao princípio da separação dos poderes.
    IV. Desrespeito ao direito à educação, com o alcance que lhe confere a Constituição de 1988
    32. A educação assegurada pela Constituição de 1988, segundo seu texto expresso, é aquela capaz de promover o pleno desenvolvimento da pessoa, a sua capacitação para a cidadania, a sua qualificação para o trabalho, bem como o desenvolvimento
humanístico do país. Nesse sentido, os artigos 205 e 214 da Carta preveem:
    “Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho.” (Grifou-se)
    “Art. 214. A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar
a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas que conduzam a:
    I – erradicação do analfabetismo;
    II – universalização do atendimento escolar;
    III – melhoria da qualidade do ensino;
    IV – formação para o trabalho;
    V – promoção humanística, científica e tecnológica do País.
    VI – estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto.”(Grifou-se).
    33. A Constituição assegura, portanto, uma educação emancipadora, que habilite a pessoa para os mais diversos âmbitos da vida, como ser humano, como cidadão, como profissional. Com tal propósito, define as diretrizes que devem ser observadas pelo
ensino, a fim de que tal objetivo seja alcançado, dentre elas a já mencionada (i) liberdade de aprender e de ensinar; (ii) o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; (iii) a valorização dos profissionais da educação escolar. Confira-se o teor
do art. 206, II, III e V, CF/1988:
    Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
    I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
    II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
    III – pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
    IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
    V – valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas;
    VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei;
    VII – garantia de padrão de qualidade.
    VIII – piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal.
    34. No mesmo sentido, o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Protocolo Adicional de São Salvador à Convenção Americana sobre Direitos Humanos reconhecem que a educação deve visar ao pleno desenvolvimento da
personalidade humana, à capacitação para a vida em sociedade e à tolerância e, portanto, fortalecer o pluralismo ideológico e as liberdades fundamentais. Veja-se:
    Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Decreto nº 591/1992)
    “Artigo 13. [...].
    § 1º. Os Estados-partes no presente pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos
direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os
grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.” (Grifou-se).
    Protocolo Adicional de São Salvador (Decreto nº 3.321/1999)
    “Art. 13. Direito à Educação
    [...].
    2. Os Estados-Partes neste Protocolo convêm em que a educação deverá orientar-se para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade, e deverá fortalecer o respeito pelos direitos humanos, pelo pluralismo ideológico,
pelas liberdades fundamentais, pela justiça e pela paz. Convêm também em que a educação deve tornar todas as pessoas capazes de participar efetivamente de uma sociedade democrática e pluralista e de conseguir uma subsistência digna; bem como favorecer a
compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos, e promover as atividades em prol da manutenção da paz.
    3. Os Estados-Partes neste Protocolo reconhecem que, a fim de conseguir o pleno exercício do direito à educação: [...].
    De acordo com a legislação interna dos Estados-Partes, os pais terão direito a escolher o tipo de educação que deverá ser ministrada aos seus filhos, desde que esteja de acordo com os princípios enunciados acima.” (Grifou-se).
    35. O próprio Protocolo Adicional de São Salvador, ao reconhecer o direito dos pais de escolher o tipo de educação que deverá ser ministrada a seus filhos, previsto no artigo 12, §4º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, condiciona tal
direito à opção por uma educação que esteja de acordo com os demais princípios contemplados no Protocolo e que, por consequência, seja apta ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, à participação em uma sociedade democrática, à promoção do
pluralismo ideológico e das liberdades fundamentais.
    36. A toda evidência, os pais não podem pretender limitar o universo informacional de seus filhos ou impor à escola que não veicule qualquer conteúdo com o qual não estejam de acordo. Esse tipo de providência – expressa no art. 13, § 5º – significa
impedir o acesso dos jovens a domínios inteiros da vida, em evidente violação ao pluralismo e ao seu direito de aprender. A educação é, justamente, o acúmulo e o processamento de informações, conhecimentos e ideias que proveem de pontos de vista
distintos, experimentados em casa, no contato com amigos, com eventuais grupos religiosos, com movimentos sociais e, igualmente, na escola.
    1. Direito à educação e pluralismo de ideias
    37. Há uma evidente relação de causa e efeito entre o que pode dizer um professor em sala de aula, a exposição dos alunos aos mais diversos conteúdos e a aptidão da educação para promover o seu pleno desenvolvimento e a tolerância à diferença.
Quanto maior é o contato do aluno com visões de mundo diferentes, mais amplo tende a ser o universo de ideias a partir do qual pode desenvolver uma visão crítica, e mais confortável tende a ser o trânsito em ambientes diferentes dos seus. É por isso que
o pluralismo ideológico e a promoção dos valores da liberdade são assegurados na Constituição e em todas as normas internacionais antes mencionadas, sem que haja menção, em qualquer uma delas, à neutralidade como princípio diretivo.
    38. A própria concepção de neutralidade é altamente questionável, tanto do ponto de vista da teoria do comportamento humano, quanto do ponto de vista da educação. Nenhum ser humano e, portanto, nenhum professor é uma “folha em branco”. Cada
professor é produto de suas experiências de vida, das pessoas com quem interagiu, das ideias com as quais teve contato[4]. Em virtude disso, alguns professores têm mais afinidades com certas questões morais, filosóficas, históricas e econômicas; ao
passo que outros se identificam com teorias diversas. Se todos somos – em ampla medida, como reconhecido pela psicologia – produto das nossas vivências pessoais, quem poderá proclamar sua visão de mundo plenamente neutra?[5] A própria concepção que
inspira a ideia da “Escola Livre” – contemplada na Lei 7800/2016 – parte de preferências políticas e ideológicas. Foi o que observou Leandro Karnal a respeito do tema em questão:
    “[...]. Então, como já desafiei algumas pessoas antes, me diga um fato histórico que não tenha opção política. Cortar a cabeça de Luís XVI, 21 de janeiro de 1793? Cortar a cabeça de Maria Antonieta, 16 outubro 1793? Vamos dizer ‘que pena, coitados
dos reis’, ou vamos analisar como um processo de violência típico da revolução e assim por diante? Não existe escola sem ideologia. Seria muito bom que o professor não impusesse apenas uma ideologia e sempre abrisse caminho ao debate. Mas é uma crença
fantasiosa, [...], de que a escola forma a cabeça das pessoas, e que esses jovens saiam líderes sindicais. Os jovens têm sua própria opinião: ouvem o professor, vão dizer que o professor é de tal partido. Os jovens não são massa de manobra, e os pais e
professores sabem que eles têm sua própria opinião. Toda opinião é política, inclusive a Escola sem Partido. Eu gostaria de uma escola que suscitasse o debate, que colocasse para o aluno, no século XIX, um texto de Stuart Mill, falando do indivíduo e da
liberdade do mercado, ao lado de um texto de Marx, e que o aluno debatesse os dois textos. Mas se o professor for militante de um partido de esquerda ou de centro? Também faz parte do processo. Isto não é ruim. A demonização da política é a pior herança
da ditadura militar, que além de matar seres humanos, ainda provocou na educação um dano que vai se arrastar por mais algumas décadas.” (Grifou-se).
          39. Está claro, portanto, que a neutralidade pretendida pela Lei alagoana colide frontalmente com o pluralismo de ideias, com o direito à educação com vistas à formação plena como ser humano, à preparação para o exercício da cidadania e à
promoção da tolerância, valores afirmados pela Constituição e pelos tratados internacionais que regem a matéria.
    2. Direito à educação e liberdade de ensinar
    40. A Lei 7.800/2016 traz, ainda, previsões de inspiração evidentemente cerceadora da liberdade de ensinar assegurada aos professores, que evidenciam o propósito de constranger e de perseguir aqueles que eventualmente sustentem visões que se afastam
do padrão dominante, estabelecendo vedações – extremamente vagas – tais quais: (i) proibição de conduta por parte do professor que possa induzir opinião político-partidária, religiosa ou mesmo filosófica nos alunos (art. 2º); (ii) proibição de
manifestar-se de forma a motivar os alunos a participar de manifestações, atos públicos ou passeatas (art. 3º, III); (iii) dever de tratar questões políticas, socioculturais e econômicas, “de forma justa”, “com a mesma profundidade”, abordando as
principais teorias, opiniões e perspectivas a seu respeito, concorde ou não com elas (art. 3º, IV).
    41. As aludidas proibições dirigidas aos professores são formuladas com a indicação expressa de que seu descumprimento ensejará punição disciplinar com base no Código de Ética Funcional dos Servidores Públicos e no Regime Jurídico Único dos
Servidores Públicos do Estado de Alagoas (art. 7º).
    42. Mais uma vez, está presente no aludido dispositivo a intenção de impor ao professor uma apresentação pretensamente neutra dos mais diversos pontos de vista – ideológicos, políticos, filosóficos – a respeito da matéria por ele ensinada,
determinação que é inconsistente do ponto de vista acadêmico e evidentemente violadora da liberdade de ensinar. Confira-se, nesse sentido, o que diz Robert Post sobre o tema[6]:
    “[...]. É evidente que qualquer pretensão de neutralidade política é inconsistente com princípios elementares da liberdade acadêmica.
    A pretensão de neutralidade política imporia ao professor a exposição de todos os lados de uma questão controvertida do ponto de vista político. No entanto, qualquer determinação nesse sentido seria incompatível com o respeito, por parte do
professor, aos standards profissionais que regem a sua atividade. Basta considerar o caso do biólogo que ensina teoria da evolução. A teoria da evolução é controversa politicamente porque o significado literal da Bíblia é objeto de debate político.
Pretender que o biólogo confira tempo igual a uma teoria de desenho inteligente (theory of intelligent design), somente porque pessoas leigas, engajadas politicamente, acreditam nessa teoria, é dizer que o professor, em nome da neutralidade política,
deve apresentar como críveis ideias que a sua profissão reconhece como falsas. A razão de ser da liberdade acadêmica é justamente proteger a convicção acadêmica deste tipo de controle político. A liberdade acadêmica obriga os professores a utilizarem
critérios acadêmicos e não políticos para guiar sua atividade.” (Grifou-se).
    43. Justamente porque os conteúdos acadêmicos podem ser muito abrangentes e suscitar debates políticos, Post observa que a permanente preocupação do professor quanto às repercussões políticas de seu discurso em sala de aula e quanto à necessidade de
apresentar visões opostas os levaria a deixar de tratar temas relevantes, a evitar determinados questionamentos e polêmicas, o que, por sua vez, suprimiria o debate e desencorajaria os alunos a abordar tais assuntos, comprometendo-se a liberdade de
aprendizado e o desenvolvimento do pensamento crítico. Veja-se[7]:
    “Porque os conteúdos acadêmicos abrangem todos os assuntos de interesse humano, as ideias dos professores podem se mostrar politicamente controvertidas em uma infinidade de maneiras. A regra de neutralidade política imporia aos professores que
permanecessem constantemente vigilantes a respeito das repercussões de ideias expressas em sala de aula; demandaria a apresentação de ‘pontos de vista alternativos’ ‘de modo justo’ sempre que uma ideia expressa em sala de aula pudesse gerar um certo
grau de controvérsia política. É fácil verificar como esse tipo de norma suprimiria o debate e fragilizaria o objetivo de provocar nos estudantes o exercício de um pensamento independente. É justamente em virtude desse objetivo que a liberdade de
ensinar determina que os professores sejam livres para estruturar e discutir em sala de aula o material que acreditem ser pedagogicamente mais efetivo, desde que não doutrinem seus alunos ou violem standards de pertinência e competência pedagógica.”
(Grifou-se).
    44. A liberdade de ensinar é um mecanismo essencial para provocar o aluno e estimulá-lo a produzir seus próprios pontos de vista. Só pode ensinar a liberdade quem dispõe de liberdade. Só pode provocar o pensamento crítico, quem pode igualmente
proferir um pensamento crítico. Para que a educação seja um instrumento de emancipação, é preciso ampliar o universo informacional e cultural do aluno, e não reduzi-lo, com a supressão de conteúdos políticos ou filosóficos, a pretexto de ser o estudante
um ser “vulnerável”. O excesso de proteção não emancipa, o excesso de proteção infantiliza.[8]
    45. Vale notar, ademais, que a norma impugnada expressa uma desconfiança com relação ao professor. Os professores têm um papel fundamental para o avanço da educação e são essenciais para a promoção dos valores tutelados pela Constituição. Não se
pode esperar que uma educação adequada floresça em um ambiente acadêmico hostil, em que o docente se sente ameaçado e em risco por toda e qualquer opinião emitida em sala de aula. A lei impugnada, nesta medida, desatende igualmente ao mandamento
constitucional de valorização do profissional da educação escolar (CF/1988, art. 206, V).
    V. Violação ao princípio da proporcionalidade
    46. Não se pretende, com as considerações acima, afirmar que, em nome da liberdade de ensinar, toda e qualquer conduta é permitida ao professor em sala de aula, inclusive o comportamento que cerceie e suprima o debate ou a manifestação de visões
divergentes por parte dos próprios alunos.
    47. Tampouco se pretende equiparar a liberdade acadêmica à liberdade de expressão. A liberdade acadêmica tem o propósito de proteger o avanço científico, por meio da proteção à liberdade de pesquisa, de publicação e de propagação de conteúdo dentro
e fora da sala de aula. É assegurada, ainda, com o fim de permitir ao professor confrontar o aluno com diferentes concepções, provocar o debate, desenvolver seu juízo crítico. Tem relação com a expertise do professor, ainda que não se restrinja a ela,
porque as fronteiras de cada disciplina são elas próprias bastante indefinidas. Tem o propósito de assegurar uma educação abrangente.
    48. A liberdade de expressão, por sua vez, volta-se à preservação de valores existenciais, à livre circulação de ideias e ao adequado funcionamento do processo democrático. Não tem relação com expertise técnica, não tem compromisso com standards
acadêmicos, mas com a condição de cidadão e com o direito de participar do debate público. No espaço público, todos somos iguais. Na sala de aula, o professor forma pessoas e avalia os alunos. São, portanto, direitos distintos, finalidades distintas,
não necessariamente sujeitos aos mesmos limites.
    49. Não há dúvida de que a liberdade de ensinar se submete à consecução dos fins para os quais foi instituída. Deve, por isso, observar os standards profissionais aplicáveis à disciplina ministrada pelo professor. Ensinar matemática ou física segue
padrões distintos de ensinar história e geografia. Cada campo do saber tem seus limites e suas particularidades. Alguns podem trabalhar com maior objetividade do que outros. E o professor deve ser preparado para observar os standards mínimos da sua
disciplina, para preservar o pluralismo quando pertinente, para não impor sua visão de mundo, para trabalhar com os questionamentos e as divergências dos estudantes. Preparar o professor envolve a formulação de políticas públicas adequadas – e não seu
cerceamento e punição. Envolve, ainda, a definição de tais standards com clareza.[9]
    50. A norma impugnada vale-se, contudo, de termos vagos e genéricos como direito à “educação moral livre de doutrinação política, religiosa e ideológica” (art. 1º, VII), vedação a “condutas que imponham ou induzam nos alunos opiniões
político-partidárias, religiosas ou filosóficas” (art. 2º), proibição a que o professor promova “propaganda religiosa, ideológica ou político-partidária” ou incite “seus alunos a participar de manifestações, atos públicos ou passeatas” (art. 3º, III).
    51. Mas o que é doutrinação? O que configura a imposição de uma opinião? Qual é a conduta que caracteriza propaganda religiosa ou filosófica? Qual é o comportamento que configura incitação à participação em manifestações? Quais são os critérios
éticos aplicáveis a cada disciplina, quais são os conteúdos mínimos de cada qual, e em que circunstâncias o professor os terá ultrapassado?
    52. A lei não estabelece critérios mínimos para a delimitação de tais conceitos, e nem poderia, pois o Estado não dispõe de competência para legislar sobre a matéria. Trata-se, a toda evidência, de questão objeto da Lei de Diretrizes de Bases da
Educação, matéria da competência privativa da União, como já observado.
    53. O nível de generalidade com o que as muitas vedações previstas pela Lei 7.800/2016 foram formuladas gera um risco de aplicação seletiva e parcial das normas (chilling effect)[10], por meio da qual será possível imputar todo tipo de infrações aos
professores que não partilhem da visão dominante em uma determinada escola ou que sejam menos simpáticos à sua direção. Como muito bem observado por Elie Wiesel: “A neutralidade favorece o opressor, nunca a vítima. O silêncio encoraja o assédio, nunca o
assediado”.[11]
    54. A norma é, assim, evidentemente inadequada para alcançar a suposta finalidade a que se destina: a promoção de educação sem “doutrinação” de qualquer ordem. É tão vaga e genérica que pode se prestar à finalidade inversa: a imposição ideológica e
a perseguição dos que dela divergem. Portanto, a lei impugnada limita direitos e valores protegidos constitucionalmente sem necessariamente promover outros direitos de igual hierarquia. Trata-se, assim, de norma que viola o princípio constitucional da
proporcionalidade (art. 5º, LIV e art. 1º), na vertente adequação, por não constituir instrumento apto à obtenção do fim que alega perseguir.
    55. Também por essas razões, não tenho dúvidas quanto à plausibilidade da inconstitucionalidade integral da Lei 7.800/2016.
Conclusão
    56. Diante do exposto, defiro a liminar pleiteada para determinar a suspensão da integralidade da Lei 7.800/2016 do Estado de Alagoas. Inclua-se em pauta para referendo do plenário.
    Intime-se. Pulique-se.
    Brasília, 21 de março de 2017.
Luís Roberto Barroso
Ministro do Supremo Tribunal Federal
    ________________________
    notas:
    [1] - SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 9. ed., São Paulo: Malheiros, 2014, p. 274-275; FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. 3. ed., 2000. p. 178.
    [2] - MOTTA, Elias de Oliveira. Direito educacional e educação no século XXI. Brasília: Unesco, 1997. p. 91.
    [3] - A norma é produto do Projeto de Lei Ordinária º 69/2015, de autoria do Deputado Ricardo Nezinho.
    Disponível em: .
    [4] - [1] SCHLENKER, Barry R. Identity and Self Identification. In: The self and social life. Nova Iorque: McGraw-Hill Book Company, 1985. p. 65-99.
    [5] - FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). In: Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
    [6] - FINKIN, Matthew W.; POST, Robert. For the Common Good: Principles of American Academic Freedom. New Haven: Yale University Press, 2011, livre tradução.
    [7] - FINKIN, Matthew W.; POST, Robert. For the Common Good: Principles of American Academic Freedom. New Haven: Yale University Press, 2011, livre tradução.
    [8] - V. RE 590.415, rel. Min. Luís Roberto Barroso, para considerações análogas, no que respeita ao excesso de tutela do trabalhador e à atrofia de suas capacidades cívicas.
    [9] - V. sobre a diferenciação entre liberdade acadêmica e liberdade de expressão: FINKIN, Matthew W.; POST, Robert. For the Common Good: Principles of American Academic Freedom. New Haven: Yale University Press, 2011.
    [10] - SCHAUER, Frederick. Fear, Risk and the First Amendment: Unraveling the Chilling Effect. College of William & Mary Law School Scholarship Repository. Disponível em:
.
    [11] - Frase extraída do discurso pronunciado por Elie Wiesel quando do recebimento do Prêmio Nobel da Paz, em dezembro de 1986, livre tradução. No original: “We must take sides. Neutrality helps the oppressor, never the victim. Silence encourages

the tormentor, never the tormented”.

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