(Por Romulus Maya - direto da Suíça)
O ótimo repórter Thiago Herdy, neste O
GLOBO, publicou – no último dia 29 de janeiro – matéria cujo teor,
importantíssimo e escandaloso, é tão eloquente sobre o estado de coisas no
Brasil quanto o fato de haver pouco repercutido é representativo do espírito do
tempo em que vivemos. Chama-se “Chaves para abrir segredos da Odebrecht estão
perdidas” e dá conta de que o cidadão brasileiro provavelmente jamais saberá o
que abriga um dos sistemas usados pelo setor de Operações Estruturadas da
empreiteira para organizar a distribuição de propina. A trama se complica
quando somos lembrados de que a entrega dos dados reunidos no programa –
Mywebday é o nome do troço – compõe o acordo de leniência firmado pela empresa.
Há seis meses, cinco discos rígidos com cópia das informações – e dois
pen drives que deveriam dar acesso ao software – chegaram ao Ministério Público
Federal. Desde então, porém, nada. Nem MPF nem Polícia Federal conseguiram
restaurar-lhe o conteúdo. De consistente mesmo, a respeito, apenas o movimento
– em curso – para abafar a história e deixar tudo como está, e a desconfiança
de que o trabalho por quebrar os códigos do programa foi deliberadamente
negligenciado. Um exemplo, na melhor das hipóteses, da profundidade da incompetência
em questão: o MPF simplesmente não testou as chaves de acesso no momento da
entrega do material. Hoje, suspeita-se – tudo, claro, sob investigação – de que
os dispositivos tenham sido apagados e reescritos. Que tal? Respire fundo,
leitor, para lidar com a declaração a seguir: “O sistema está criptografado,
com duas chaves perdidas. Não houve meio de recuperar. Nem sei se haverá. Não
houve qualquer avanço nisso.”
Oi? O quê? Como é? A coisa fica especialmente confusa quando revelado o
autor dessa fala – que seria blasé não fosse irresponsável: Carlos Fernando dos
Santos, um dos coordenadores da Lava-Jato em Curitiba, cujo tom francamente
despreocupado com o interesse público é inconsistente com o histórico sempre
tão indignado do doutor, embora exato em expressar o modelo de atuação
escolhido pelos procuradores da força-tarefa.
São muitas as dúvidas. Todas derivam da
falta de transparência acerca do conteúdo do Mywebday. O Ministério Público
Federal recebeu o material – extraído de servidor na Suíça – em agosto de 2017.
Nunca se falou sobre a impossibilidade de ser lido. Desde então, conforme
noticiado, a única restrição de acesso – muito problemática – tinha origem
contratual: segundo uma das cláusulas estabelecidas no acordo com a Odebrecht,
só os procuradores poderiam analisar os dados – em detrimento, claro, da
Polícia Federal, o órgão investigador por excelência. Algumas reportagens,
entre agosto e novembro do ano passado, registraram o motivo da seletividade: o
MPF zelava pela exclusividade – e aqui o colunista tenta não rir – para evitar
que os documentos vazassem.
Paralelamente, fontes da PF faziam circular na
imprensa a avaliação de que o Ministério Público Federal – também como
componente da briga corporativa por poder entre as duas instituições –
impunha-se como único a custodiar as informações porque desejava o monopólio
para manuseálas, e porque a empreiteira teria receio de que temas não abordados
nas colaborações premiadas de seus executivos pudessem ser explorados pelos policiais.
Em setembro, em resposta a pedido da defesa do ex-presidente Lula, o juiz
Sergio Moro determinou que o sistema fosse periciado pela Polícia Federal – mas
também sobre os desdobramentos dessa decisão prevaleceu a desinformação.
Não daria outra. A falta de clareza a respeito do
Mywebday e as legítimas desconfianças decorrentes do que é obscuro criaram as
condições para a ascensão influente de narrativas falaciosas como a do petismo
– e ofereceram elementos para que a defesa de Lula acusasse o MPF de tratar o
software como inviolável para esconder a ausência de provas, nos documentos,
que sustentassem a palavra de delatores da Odebrecht contra o ex-presidente.
Incontroverso é que o episódio – o
descaso para com a substância do sistema – evidencia mais uma vez a distorção
no modo como o Ministério Público Federal compreende e usa o instituto da
colaboração premiada. Essa deturpação de finalidade autoriza algumas reflexões.
Por exemplo: se o MPF tivesse priorizado o ingresso ao programa, talvez
encontrasse conjunto de informações capaz de tornar prescindíveis os acordos de
delação (ou boa parte deles) firmados com quase 80 executivos da Odebrecht. Se
tivesse se dedicado, antes de tudo, a decifrar o sistema (ou a comprovar a
impossibilidade de fazê-lo), quem sabe o Estado brasileiro se livrasse de ter
de oferecer tantos benefícios a tanta gente; e quem sabe a colaboração premiada
deixasse de ser muleta para investigadores incompetentes (e/ou apaixonados pelo
palanque) e se tornasse o que é: recurso complementar. Nesse caso, é provável,
teríamos mais provas e menos herois.
Uma pergunta final e urgente: se a
entrega do conteúdo codificado no Mywebday integra o acordo de leniência da
empresa, e se, afinal, sua leitura for mesmo inexpugnável, isso não significará
comprometer gravemente o contrato firmado entre empreiteira e Estado
brasileiro? Ficará por isso mesmo?
Alfio Bogdan - Físico e Professor
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