Entrevista de Haddad à Monica Bergamo da FSP.
SÃO PAULO
Candidato a presidente derrotado nas eleições, Fernando Haddad (PT-SP) diz que há dois anos
previa que a “extrema direita” teria espaço na política nacional. Afirma que
errou em uma previsão: a de que João Doria (PSDB-SP) lideraria esse campo como
um “PSDB bolsonarizado”.
Em sua
primeira entrevista desde a eleição, Haddad afirma que não pretende dirigir o
PT nem sua fundação, mas que militará pela formação de frentes em defesa dos
direitos sociais e civis.
Fernando
Haddad em sua casa, em São Paulo, durante entrevista à Folha - Marlene
Bergamo/Folhapress
Para ele, a eleição de Jair Bolsonaro (PSL) mostrou que o país vive num sistema híbrido, em que o
autoritarismo cresce dentro das instituições democráticas.
O resultado das eleições deste ano já foi definido
como tsunami, implosão do sistema. Qual é a sua visão, de quem foi o derrotado? [sorrindo] Antes de mim tiveram uns 12 [derrotados],
né?
O senhor personificou a derrota. Há dois anos, eu
te dei uma entrevista. E talvez tenha sido um dos primeiros a dizer: “É
muito provável que a extrema direita tenha espaço na cena política nacional”.
Eu dizia: ...
...“Existe uma onda que tem a
ver com a crise [econômica] de 2008, que é a crise do neoliberalismo, provocada
pela desregulamentação financeira de um lado e pela descentralização das
atividades industriais do Ocidente para o leste asiático”.
Os EUA estavam perdendo plantas
industriais para a China. E a resposta foi [a eleição de Donald] Trump. Isso
abriria espaço para a extrema direita no mundo. Mas a extrema direita dos EUA
não tem nada a ver com a brasileira. Trump é tão regressivo quanto o Bolsonaro.
Mas não é, do ponto de vista econômico,
neoliberal. E o chamado Trump dos trópicos [Bolsonaro] é neoliberal.
Trump apoia
Bolsonaro.
Ele
precisa que nós sejamos neoliberais para retomar o protagonismo no mundo, e
tirar a China. Está havendo, portanto, um quiproquó: os EUA negam o
neoliberalismo enquanto não nos resta outra alternativa a não ser adotá-lo.
E por quê? A
crise mundial acarretou a desaceleração do crescimento latino-americano e a
consequente crise fiscal. No continente todo houve a ascensão de governos de
direita — no caso do Brasil, de
extrema direita.
Por
que o centro político não conseguiu responder a
essa crise? Eu
imaginava [há dois anos] que o [João] Doria, que é essencialmente o Bolsonaro,
fosse ser essa figura [que se elegeria presidente]. Achava que a elite
econômica não abriria mão do verniz que sempre fez parte da história do Brasil.
As classes dirigentes nunca quiseram parecer ao mundo o que de fato são.
O quê? O Bolsonaro. Já o
Doria seria um PSDB bolsonarizado, mas com aparência tucana. Eu apostava nele.
E por
que não no Lula? Eu já fazia a ressalva: “Eu não sei o que vão fazer com o Lula”. Está
claríssimo que, se não tivessem condenado
o Lula num processo frágil, que nenhum jurista sério reconhece como robusto,
ele teria ganhado a eleição. Eu fiz 45% dos votos [no segundo turno]. Ele teria
feito mais de 50%.
Mas isso inverte todo o seu raciocínio sobre a
ascensão da direita. O
Lula tem um significado histórico profundo. Saiu das entranhas da pobreza,
chegou à Presidência e deixou o maior legado reconhecido nesse país. Ele teria
força para conter essa onda.
Eu dizia: “Tem que ver se vão
deixar o Lula concorrer e como o Ciro vai se posicionar”. O Lula foi preso e o
Ciro não soube fazer a coalizão que o levaria à vitoria, que só poderia ser uma
coalizão com o PT.
Ele diz que foi traído miseravelmente pelo partido. Ele não quis fazer
[a coalizão]. Uma das razões foi declarada pelo [filósofo Roberto] Mangabeira
[Unger, aliado de Ciro] nesta casa. Ele dizia: “Nós não queremos ser os continuadores do lulismo.
Não queremos receber o bastão do Lula. Nós queremos correr em raia própria". Palavras dele. Eles não queriam ser
vistos como a continuidade do que julgavam decadente. Apostavam que, com Lula
preso, o PT não teria voto a transferir. Aconteceu exatamente o oposto.
Mas o
Lula estava disposto a passar o bastão? Sempre depende dos termos da conversa, que não aconteceu.
Ciro diz que sim e que até foi convidado para
fazer o papel lamentável que o senhor fez. Não houve uma reunião entre o Ciro e o Lula. No final, [quando
ficou claro que Lula não poderia concorrer], ele foi sondado por mim e por
todos os governadores do PT. Eu sou amigo, gosto do Ciro. Mas ele errou no
diagnóstico. E pode voltar a errar se entender que isolar o PT é a solução para
o seu projeto pessoal.
O PT elegeu uma bancada expressiva,
quatro governadores, fez 45% dos votos no segundo turno, 29% no primeiro. É até
hoje o partido de centro-esquerda mais importante da história do país.
Outras
legendas repetem que o PT não abre mão da hegemonia. O PT é um player no
sentido pleno da palavra. É um jogador de alta patente, que sabe fazer
política. Sabe entrar em campo e defender o seu legado.
O
senhor disse em 2016 que o PT não teria mais a hegemonia da esquerda. O próprio Lula
considerava o [então governador de PE] Eduardo Campos candidato natural para
receber apoio do PT em 2018, se tivesse aceitado ser vice da Dilma [em 2014].
Todos dizem que não confiam no PT. Política é feita de confiança. E de risco,
né?
O PT é o mais forte partido de
centro-esquerda. Ao mesmo tempo, sofre rejeição que daria a ele pouca
perspectiva de vitória. Aí
entramos nas questões circunstanciais da eleição, com episódios importantes. O
atentado [contra Bolsonaro] deu
a ele uma visibilidade maior do que a soma de todos os outros
candidatos.
Houve efetivamente intensa
mobilização de recursos não contabilizados para [financiar] o disparo
de notícias falsas sobre mim. Houve a
ausência do Bolsonaro nos debates. E eu penso que teria sido importante que
os democratas tivessem se unido no segundo turno.
O que
aconteceu? Olha,
eu não consegui falar com o Ciro até hoje. Sobre ele e o Fernando Henrique
Cardoso [que também se recusou a dar apoio ao PT], eu diria, a favor deles: os
dois tinham três governadores [em seus próprios partidos] disputando a eleição
fazendo campanha para o Bolsonaro. O PDT [de Ciro] é um partido de esquerda,
“pero no mucho”.
E a
partir de agora? Eu já tentei falar com o Cid [Gomes, irmão de Ciro]. Falei com o PDT,
com o PC do B e o PSB. É obrigação nossa conversar. Entendo que devemos
trabalhar em duas frentes: uma de defesa de direitos sociais, que pode agregar
personalidades que vão defender o SUS, o investimento em educação, a proteção
dos mais pobres. A outra, em defesa dos direitos civis, da escola pública
laica, das questões ambientais.
O PT dificilmente poderia liderar essas
frentes. Não é uma
questão de liderar. O PT tem que ajudar a organizar.
No Brasil está sendo gestado o que
eu chamo de neoliberalismo regressivo, decorrente da crise econômica. É uma
onda diferente da dos anos 1990. Ela chega a ser obscurantista em determinados
momentos, contra as artes, a escola laica, os direitos civis.
É um complemento necessário para
manter a agenda econômica do Bolsonaro, que é a agenda [do presidente Michel]
Temer radicalizada.
Essa agenda não passa no teste da
desigualdade. Tem baixa capacidade de sustentação. Mas, acoplada à agenda
cultural regressiva, pode ter uma vida mais longa. Pode ter voto. Teve voto.
Essa pauta mobiliza as pessoas
criando inclusive ficções. Eu permaneci à frente do MEC por oito anos. As
expressões “ideologia
de gênero” e “escola
sem partido” não existiam. Era uma agenda de ninguém. Ela foi criada,
ou importada, como um espantalho para mobilizar mentes e corações.
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