quarta-feira, 13 de outubro de 2021

O RELIGIOSO, O EDUCADOR E O OPERÁRIO

 Texto do amigo  Martinho Condini*

         Em 1909, 1921 e 1945, nos estados do Ceará e Pernambuco nasceram três crianças em famílias humildes, e enfrentaram os problemas típicos das famílias brasileiras: esforço para o sustento da família, criação e formação escolar dos filhos.

         Cada um desses jovens seguiu o seu caminho a partir de suas realidades sociais, histórias de vida e lugares de fala.

         A história do Religioso, do Educador e do Operário nos serve de exemplo, primeiro pela dificuldade de serem compreendidos pela sociedade brasileira, principalmente a elite. Segundo pela perseguição que eles enfrentaram dos seus opositores, no campo religioso, educacional, sindical e político. E terceiro pelo legado que nos deixaram a partir de seus feitos em prol do povo brasileiro.

         O mais incrível é que as pessoas que discordam das ideias e práticas de um dos três consequentemente não aceitam também as dos outros dois. Isso reforça a similaridade que os três tiveram em seus protagonismos na sociedade brasileira.  

         O Religioso, miúdo de gestos largos e fala forte e incisiva, fez da sua vida uma luta em favor dos pequeninos, como gostava de chamar os excluídos oprmidos da nossa sociedade.

          Na década de 1920, na cidade de Fortaleza criou o primeiro sindicato de trabalhadoras mulheres (empregadas domésticas) do Brasil.

         Na cidade do Rio de Janeiro, entre às décadas de 1940 e 1950, idealizou e fundou a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e também teve participação direta na criação da Conferência Episcopal Latino (CELAM). Foi a principal voz latino americana e brasileira no  Concílio Vaticano II (1962-1965), uma das principais vozes na Conferência Episcopal Latino Americana de Medellín (1968), um dos precursores da criação da “Igreja do Pobres”, das “Comunidades Eclesiais de Base” (CEBs), da corrente teológica “Teologia da Libertação”. Criou a Cruzada São Sebastião, conjunto habitacional com 10 prédios, que na época abrigou os moradores da favela Praia do Pinto e Morro Azul, no bairro do Leblon. Fundou a Cáritas brasileira, criou o Banco e a Feira da Providência, a Comunidade de Emaús e participa da organização do Movimento de Educação de Base (MEB).

         Em 1964, enquanto ocorria o golpe militar, o Religioso era transferido para cidade de Recife, onde permaneceu até o seu falecimento em 1999.   

         Em Recife, foi o idealizador e fundador do “Movimento Esperança”, uma ação orquestrada por ele para ajudar as pessoas mais necessitadas e excluídas de Recife, grande Recife e posteriormente expandiu-se para outras regiões do estado de Pernambuco.  

         O Religioso se tornou a mais importante voz contra o regime ditatorial no Brasil. Foi o primeiro brasileiro a falar no exterior que no Brasil havia censura, tortura e morte. Foi calado por quase dez anos; os militares impediram que os órgãos de imprensa o entrevistassem ou mencionassem o seu nome. Sua voz foi calada no Brasil, mas ecoou mundo a fora, tornando-se “a voz de quem não tem voz”. A igreja onde morava foi metralhada por várias vezes. E ele não foi assassinado pela ditadura porque era uma liderança conhecida nacional e mundialmente pela sua incansável luta por justiça social e pelos direitos humanos. Por quatro vezes seguidas, por intervenção do Itamarati, não recebeu o “Prêmio Nobel da Paz”.   

         O Religioso foi a principal liderança da igreja católica progressista no Brasil e na América Latina na segunda metade do século XX.

         O Educador, também sensível às causas sociais, principalmente no que se refere à educação e alfabetização de jovens e adultos; no final da década de 1950, por meio de sua  práxis pedagógica realizou com outros educadores um processo de alfabetização de adultos na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte. Esse processo criado e coordenado pelo Educador foi revolucionário, sendo até hoje pesquisado e praticado por muitas educadoras e  educadores no Brasil e outros países.   

         O processo de alfabetização criado pelo Educador tem como base uma educação libertadora, onde a leitura de mundo das crianças, jovens e adultos é o princípio para a conscientização dos mesmos e consequentemente realizarem a transformação da sociedade e a de si mesmos, saindo da condição de oprimidos e excluídos.

         Por isso, o governo brasileiro, entre os anos de 1963 e 1964, convidou o Educador a coordenar e implantar o Programa Nacional de Alfabetização (PNA), com o intuito de alfabetizar milhões de brasileiros.

         Mas, assim que ocorreu o golpe militar em 1964, e instaurada a ditadura, o programa de alfabetização foi abortado e o Educador foi exilado do Brasil, retornando apenas em 1980. Neste período de dezesseis anos trabalhou no Chile, Estados Unidos, Suíça e vários países da África, aplicando a sua práxis alfabetizadora.

         Neste período escreveu vários livros. Um deles se tornou o esteio de sua filosofia e prática educacional, “Pedagogia do Oprimido”, que atualmente é o terceiro livro mais lido no mundo na área das ciências humanas.

         Após o seu retorno ao Brasil, construiu um legado a partir da sua prática como educador, professor universitário, pensador da educação e escritor. A sua maneira sempre muito amorosa, sincera e cativante de lidar com as pessoas foi algo peculiar.

         Hoje,o Educador é reconhecido mundialmente. Vários países adotam suas práticas educacionais para formar as suas crianças, jovens e adultos. Mesmo após o seu falecimento em 1997, ele inspira milhares de educadoras e educadores do Brasil e do mundo. Atualmente é o patrono da educação brasileira e indiscutivelmente foi o mais importante educador do Brasil.  

         O Operário teve a mesma história de milhões de nordestinos. Ainda criança vem com sua mãe e irmãos, de pau de arara, para São Paulo. Na infância pobre, ajudou no sustento da família, trabalhou como vendedor de amendoim, laranja, auxiliar de tinturaria, telefonista e bicos como engraxate. Adolescente, faz um curso de torneiro mecânico e torna-se operário da indústria na grande São Paulo.  E assim foi seguindo a sua vida, constituindo família, criando filhos e sempre na luta pela sobrevivência.

         Ao final da década de 1960, despolitizado, ingressou na diretoria do sindicato da sua categoria profissional.  Mas no decorrer dos anos foi compreendendo a relação de exploração entre  capital e trabalho. 

         Em 1975, em plena ditadura militar se torna presidente do sindicato e junto com outros companheiros constrói um “novo sindicalismo”. Um sindicalismo de luta em defesa da classe trabalhadora.

         Ao final da década de 1970 e começo da década de 1980, lidera as maiores greves de trabalhadores da história do Brasil na região do ABC na grande São Paulo, assembléias com mais de 150 mil trabalhadores, em um período em que greves de trabalhadores eram proibidas.

         A truculência do regime lhe custou várias prisões, mas isso não o fez esmorecer, e a sua luta pela melhoria das condições de trabalho refletiu em outras categorias profissionais.      Tornou-se uma liderança nacional para as trabalhadoras e trabalhadores deste país. 

         No início da década de 1980, o Operário percebe que a sua luta não era mais apenas ao lado da sua categoria profissional, mas uma luta a favor dos oprimidos e excluídos da sociedade brasileira. Então funda um partido político, o Partido dos Trabalhadores (hoje o maior partido progressista de esquerda do mundo), com o apoio de operários, camponeses, sindicalistas, intelectuais, representantes da igreja progressista, militantes de esquerda e de movimentos populares.

         O Operário se tornou a principal liderança política do Brasil dos últimos 40 anos em nosso país. Após quatro eleições presidenciais, tornou-se presidente da república por dois mandatos seguidos; em 2002 eleito com mais de 52 milhões de votos e em 2006 com mais de 58 milhões votos. Em seu governo, o Brasil, que era a 13ª potência econômica do mundo, tornou-se a 6ª, segundo o banco mundial. Também, em seu governo foi instituída a maior política de inclusão social da história desse país, possibilitando a milhões de pessoas ter um emprego, tomar café da manhã, almoçar e jantar com suas famílias. Além disso, fez com que mais de 36 milhões de pessoas saíssem da condição de miseráveis e milhares de jovens ingressassem no ensino superior e conquistassem melhores empregos e condições de vida.

         O Operário com seu carisma, sua sensibilidade e inteligência, tornou-se o mais popular e melhor presidente da história da nossa república.

         Estou convencido que esses três arrochados nordestinos, o Religioso Dom Helder Camara, o Educador Paulo Freire e o Operário Luiz Inácio Lula da Silva, oriundos de uma mesma raiz, estão irmanados pela mesma nordestinidade caracterizada pela coragem, valentia, caráter e perseverança.

         A busca de cada um deles pela justiça social, pelos direitos humanos, pelo respeito ao outro e pela dignidade para todos os pequeninos, oprimidos e excluídos, brasileiros e latino americanos, sintetiza o primor desses três arretados personagens da nossa história.

         Enfim, Helder, Paulo e Lula têm consigo a verdadeira brasilidade e o esperançar na construção de um Brasil genuinamente brasileiro. Protagonistas na história da igreja, da educação, do sindicalismo e da política brasileira, eles merecem todo o nosso respeito. Viva a liberdade, a democracia e os brasileiros comprometidos com o nosso povo!

 * O Prof. Martinho Condini é historiador, mestre em Ciências da Religião e doutor em Educação. Pesquisador da vida e obra de Dom Helder Camara e Paulo Freire. Publicou pela Paulus Editora os livros 'Dom Helder Camara um modelo de esperança', 'Helder Camara, um nordestino cidadão do mundo', 'Fundamentos para uma Educação Libertadora: Dom Helder Camara e Paulo Freire' e o DVD ' Educar como Prática da Liberdade: Dom Helder Camara e Paulo Freire. Pela Pablo Editorial publicou o livro 'Monsenhor Helder Camara um ejemplo de esperanza'. Contato profcondini@gmail.com 

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