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C: Sem nenhuma mediação…
MC: Sem mediação. Essa relação mágica com a realidade está
diretamente relacionada com um elemento poderosíssimo da sociedade de consumo e
muito usado pelos meios de comunicação: a satisfação imediata do desejo. É uma
das raízes da violência, porque anula a mediação, quando, na verdade, o desejo
precisa de mediação. No âmbito das manifestações, isso se expressa pela recusa
da mediação política. Por que falo em pensamento mágico? Porque o fato de que
houve uma longa e difícil negociação em torno da tarifa passa despercebido; é
como se o resultado tivesse sido imediato, um passe de mágica. Ora, quando se
tira a mediação institucional, o que se pede é a ditadura. Por exemplo, quando
vi um rapaz enrolado na bandeira brasileira dizer “meu partido é meu país”,
falei comigo mesma: “É algum neonazista que comanda esse menino, pois esse foi
o discurso nazista para a supressão dos partidos políticos!”, o que é muito
assustador e ainda mais assustador quando uma parte dos manifestantes espancou
e ensanguentou manifestantes de esquerda. Eu sempre digo: a crítica aos
partidos brasileiros é justificada, a crítica aos governos é justificada, o que
não é justificado é não perceber qual a origem desse sistema partidário, qual é
a origem desse sistema eleitoral e como é que se luta contra ele. Não se luta suprimindo
os partidos, mas produzindo uma nova institucionalidade. E não há essa
percepção por grande parte dos manifestantes. Finalmente, outro elemento a ser
pensado é o fato de que – ao menos em São Paulo e no Rio – as manifestações de
periferia são qualitativamente diferentes das manifestações do centro das
cidades. Na periferia, não são manifestações de juventude; ao contrário, há
adultos, idosos, crianças e jovens, e as demandas são muito claras. As
manifestações do centro das cidades, pelo menos em São Paulo e no Rio de
Janeiro, são predominantemente de classe média, e é essa presença que é
preocupante, porque sabemos que, depois do Comício dos Cem Mil, em 1964, no Rio
de Janeiro, a resposta foi a Marcha da Família com Deus Pela Liberdade, apoiada
por Ademar de Barros (governador de São Paulo) e pelos governadores do RJ, MG e
BA. Depois houve em outros estados. Foi uma grande marcha de classe média para
derrubar o governo Goulart, o que aconteceu no dia 1˚ de abril daquele ano. E
depois foi a classe média qu deu o sustentáculo ideológico e apoio social à
ditadura civil-militar. Quando vi, nessas duas cidades, as esquerdas tendo de
disputar a rua com a direita, não pude deixar de ter essas lembranças. Isso é
muito preocupante.
C: Do que falamos quando falamos de classe média?
MC: Há um ano participei de duas reuniões do Conselho de Desenvolvimento
Social, criado pela presidenta Dilma para pensar o que eles chamam de “nova
classe média”. Nas duas ocasiões, minhas intervenções foram no sentido de
dizer: não há uma nova classe média, e sim a velha classe média, que cresceu,
prosperou, e está aí. O que surgiu no Brasil com os programas sociais que
tiraram 40 milhões de pessoas da linha da miséria (garantido-lhes três
refeições diárias, moradia e ensino fundamental) é uma nova classe
trabalhadora. Não faz sentido usar os instrumentos dos institutos de pesquisa e
da sociologia, falando de classe A, B, C, D, E, definidas por renda e
escolaridade. É preciso pensar as classes sociais conforme sua relação com a
forma da propriedade e do sistema de produção, isto é, os proprietários
privados dos meios sociais de produção e os não-proprietários, isto é, a força
produtiva, os trabalhadores. Situada fora do poder econômico (do capital) e da
organização social (dos trabalhadores) está a classe média, que sonha com
aquele poder e tem como pesadelo “cair” na classe trabalhadora. Esse critério
nos permite compreender que o que surgiu no Brasil com os programas sociais foi
uma nova classe trabalhadora, mas que surge no momento em que vigora o
capitalismo neoliberal. Então ela é precarizada, fragmentada, não possui formas
de organização e de referência que lhe permitam ter clara identidade, nem
formas de expressão no espaço público. Por isso é atraída pelas ideologias de
classe média, como a “teologia da prosperidade” (do pentecostalismo) e a do
“empreendedorismo” (dos chamados micro-empresários). Mas eu não fui ouvida em
Brasília. Depois houve uma reunião final de apresentação de resultados e a equipe
técnica continuou com as classes A, B, C, D, E. Disse pra mim mesma: “Sou voto
vencido. Vou para casa”. Mas pensei: “Preciso deixar isso registrado”. Então
quando a FLACSO (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais) e o Emir Sader
organizaram o livro sobre os dez anos Lula/Dilma, decidi que meu artigo seria
sobre a nova classe trabalhadora e a necessidade de uma reforma tributária, de
uma reforma política e de uma reorganização dos movimentos sociais. Eu sei que
o meu artigo destoa dos outros, que se referem às conquistas reais e importantes
desses dez anos, mas eu achei que tinha um dever político. Voltando
precisamente às manifestações: se se opera com a noção de uma nova classe
média, quais serão os programas que deverão ser implantados para atender a essa
classe? Serão programas de estímulo às montadoras, às empreiteiras
imobiliárias, às importadoras, aprofundando ao mesmo tempo o consumo, a
competição e o isolamento. E faz-se explodir o inferno urbano. Quando falo no
inferno urbano, viso essa concepção de que os programas governamentais devem
estar a serviço dessa classe média.
C: Isso explica a sua afirmação de que odeia a classe média?
MC: É.
C: De fato, ter uma casa confortável, andar de avião, comer
bem e poder ir ao cinema não são sinais de classe média… É outra coisa querer
absolutamente comprar um carro 4×4… É essa classe média que você odeia? Quer
dizer, um ideal de consumo que se está construindo?
MC: Quem ia à Europa nos anos 1950-1960 via trabalhadores dirigindo pequenos
carros (na França, o famoso “dois cavalos” da Renault; na Inglaterra, o pequeno
“biriba” da Morris; na Itália, o pequeno “cinquecento” da Fiat), saindo de
férias com a família (em geral para alguma praia), fazendo compras em lojas de
departamento populares, enviando os filhos a creches públicas e, quando
maiores, à escola pública de primeiro e segundo graus, às escolas técnicas e
mesmo às universidades; também via os trabalhadores tendo direito, juntamente
com suas famílias, a hospitais públicos e medicamentos gratuitos, e,
evidentemente, possuíam casa própria. Era a Europa da social-democracia e da
economia keynesiana, quando as lutas anteriores dos trabalhadores organizados
haviam levado à eleição de governantes de centro ou de esquerda e ao surgimento
do Estado do Bem-Estar Social, no qual uma parte considerável do fundo público
era destinada, sob a forma de salário indireto, aos direitos sociais, reivindicados
e, então, conquistados pelas lutas dos trabalhadores. E não viria à cabeça de
ninguém dizer que os trabalhadores europeus haviam passado à classe média, como
se diz hoje dos trabalhadores brasileiros, após 10 anos de políticas de
transferência de renda. Mais do que isso, a classe média conservadora (não falo
da parte da classe média que se alinha à esquerda) não tolera isso, grita e
espuma contra esses direitos dos trabalhadores. É por isso que eu falo nas
“três abominações” que definem essa classe média: trata-se de uma abominação
política, porque é fascista; uma abominação ética, porque é violenta; e de uma
bominação cognitiva, pois ela é ignorante. Eu acho que muito do que as ruas
mostraram no Brasil inteiro foram essas três abominações. Não estou celebrando,
diferentemente de vários dos meus colegas, que estão dizendo que um novo Brasil
começa, que nada será como antes, que o gigante acordou… Pelo contrário, para
quem viu a disputa desigual pelo direito à rua entre os manifestantes de
esquerda e de direita, talvez valha a pena lembrar o que escreveu Espinosa: não
rir, não lamentar, não detestar nem compactuar, mas compreender.
C: Criticando esse ideal de classe média, você critica o
governo federal. O que você diria, então, sobre os comentários que a tomam por
alguém de postura fisiológica, cega para os problemas do PT e fascinada pelo
fetiche do PT?
MC: Vou contar dois episódios. Quando eu estava ainda no governo da Erundína
(1989-1993), já no final da administração, houve um congresso do PT. Eu fui no
último dia, quando havia deliberações e moções para apresentar na assembleia
geral. Entrei na primeira sala, sentei. Disseram algumas coisas. Não concordei
e levantei a mão. A pessoa que estava dirigindo os trabalhos disse: “A
companheira é delegada”? Eu disse: “Não”. “Então a companheira não pode falar”.
Pensei com meus botões: “Entrei na sala errada. Esta não é uma sala petista.
Deixe-me sair”. Saí. Entrei numa outra sala, discutia-se outra coisa. Também
tive uma discordância e levantei a mão. A pessoa que dirigia me perguntou: “A
companheira é delegada?” Eu disse: “Não, mas já participei de tanto Congresso
do PT em que a gente fala… Eu não vou votar, porque eu não sou delegada, mas eu
vou falar”. “Não, a companheira não pode falar”. Esse congresso era num lugar
que tinha um pátio imenso interno grande. Fui, então, para o meio do pátio e
comecei a gritar: “Destruíram o PT! O PT acabou! É preciso refazer o PT!”. Fui
levada para fora do recinto, porque “a companheira não estava entendendo o
congresso”. Bom, eu venho do período em que o PT era a reunião de movimentos
sociais e populares, Comunidades Eclesiais de Base, movimentos sindicais,
exilados políticos, ex-guerrilheiros, estudantes, professores, escritores,
artistas… Nós formávamos o partido e discutíamos tudo; decidíamos tudo. Quando
vi o formato que tinha tomado, falei: “virou uma máquina burocrática”. Tanto
que, embora filiada e defensora do participo, não participo de mais nada no
interior dele, desde 1993, porque não concordo com essa estrutura. Segundo
episódio: quando ocorreu o Mensalão e houve toda a crise, surgiu um grupo que
propôs a refundação do PT sob a liderança de Tarso Genro; é um grupo que se
chama “Mensagem ao PT”. Eu participo desse grupo, que é completamente autônomo.
De vez em quando, temos uma ideia e comunicamos uns aos outros. O Juarez
Guimarães fez um livro chamado Leituras da Crise. Lá se encontra minha análise
crítica do que aconteceu com o PT: máquina burocrática, máquina eleitoral, sem
participação das bases, afastado dos movimentos que deram origem a ele e que o
fizeram crescer; portanto, um partido que precisa ser refundado. Dizer que eu
estou cegada pelo PT, dizer que eu não faço críticas ao PT é coisa de gente que
não lê a literatura política. Basta ler a revista Teoria&Debate, o livro do
Juarez Guimarães e os artigos que eu publiquei mundo afora para ver que sou
extremamente crítica. Mas o fato de eu ser crítica não significa que invalido o
partido que vi nascer e que foi a condição do estabelecimento da democracia no
Brasil, porque foi o único que introduziu a ideia de direitos sociais,
políticos e culturais, pois a democracia se define pela criação e garantia de
direitos novos. Eu não abro mão disso. O partido não me traiu (como dizem os
que o abandonaram). Ele me encoleriza, me enraivece. Eu quero fazer outro com
ele, mudá-lo de cima abaixo. Mas sou petista. Isso faz parte da minha história
política, da minha luta e do enorme respeito que tenho pelos grandes militantes
ao longo de sua história.
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