quinta-feira, 26 de setembro de 2013

As manifestações segundo Chauí

Capítulo II
cont...

C: Sem nenhuma mediação…
MC: Sem mediação. Essa relação mágica com a realidade está diretamente relacionada com um elemento poderosíssimo da sociedade de consumo e muito usado pelos meios de comunicação: a satisfação imediata do desejo. É uma das raízes da violência, porque anula a mediação, quando, na verdade, o desejo precisa de mediação. No âmbito das manifestações, isso se expressa pela recusa da mediação política. Por que falo em pensamento mágico? Porque o fato de que houve uma longa e difícil negociação em torno da tarifa passa despercebido; é como se o resultado tivesse sido imediato, um passe de mágica. Ora, quando se tira a mediação institucional, o que se pede é a ditadura. Por exemplo, quando vi um rapaz enrolado na bandeira brasileira dizer “meu partido é meu país”, falei comigo mesma: “É algum neonazista que comanda esse menino, pois esse foi o discurso nazista para a supressão dos partidos políticos!”, o que é muito assustador e ainda mais assustador quando uma parte dos manifestantes espancou e ensanguentou manifestantes de esquerda. Eu sempre digo: a crítica aos partidos brasileiros é justificada, a crítica aos governos é justificada, o que não é justificado é não perceber qual a origem desse sistema partidário, qual é a origem desse sistema eleitoral e como é que se luta contra ele. Não se luta suprimindo os partidos, mas produzindo uma nova institucionalidade. E não há essa percepção por grande parte dos manifestantes. Finalmente, outro elemento a ser pensado é o fato de que – ao menos em São Paulo e no Rio – as manifestações de periferia são qualitativamente diferentes das manifestações do centro das cidades. Na periferia, não são manifestações de juventude; ao contrário, há adultos, idosos, crianças e jovens, e as demandas são muito claras. As manifestações do centro das cidades, pelo menos em São Paulo e no Rio de Janeiro, são predominantemente de classe média, e é essa presença que é preocupante, porque sabemos que, depois do Comício dos Cem Mil, em 1964, no Rio de Janeiro, a resposta foi a Marcha da Família com Deus Pela Liberdade, apoiada por Ademar de Barros (governador de São Paulo) e pelos governadores do RJ, MG e BA. Depois houve em outros estados. Foi uma grande marcha de classe média para derrubar o governo Goulart, o que aconteceu no dia 1˚ de abril daquele ano. E depois foi a classe média qu deu o sustentáculo ideológico e apoio social à ditadura civil-militar. Quando vi, nessas duas cidades, as esquerdas tendo de disputar a rua com a direita, não pude deixar de ter essas lembranças. Isso é muito preocupante.

C: Do que falamos quando falamos de classe média?
MC: Há um ano participei de duas reuniões do Conselho de Desenvolvimento Social, criado pela presidenta Dilma para pensar o que eles chamam de “nova classe média”. Nas duas ocasiões, minhas intervenções foram no sentido de dizer: não há uma nova classe média, e sim a velha classe média, que cresceu, prosperou, e está aí. O que surgiu no Brasil com os programas sociais que tiraram 40 milhões de pessoas da linha da miséria (garantido-lhes três refeições diárias, moradia e ensino fundamental) é uma nova classe trabalhadora. Não faz sentido usar os instrumentos dos institutos de pesquisa e da sociologia, falando de classe A, B, C, D, E, definidas por renda e escolaridade. É preciso pensar as classes sociais conforme sua relação com a forma da propriedade e do sistema de produção, isto é, os proprietários privados dos meios sociais de produção e os não-proprietários, isto é, a força produtiva, os trabalhadores. Situada fora do poder econômico (do capital) e da organização social (dos trabalhadores) está a classe média, que sonha com aquele poder e tem como pesadelo “cair” na classe trabalhadora. Esse critério nos permite compreender que o que surgiu no Brasil com os programas sociais foi uma nova classe trabalhadora, mas que surge no momento em que vigora o capitalismo neoliberal. Então ela é precarizada, fragmentada, não possui formas de organização e de referência que lhe permitam ter clara identidade, nem formas de expressão no espaço público. Por isso é atraída pelas ideologias de classe média, como a “teologia da prosperidade” (do pentecostalismo) e a do “empreendedorismo” (dos chamados micro-empresários). Mas eu não fui ouvida em Brasília. Depois houve uma reunião final de apresentação de resultados e a equipe técnica continuou com as classes A, B, C, D, E. Disse pra mim mesma: “Sou voto vencido. Vou para casa”. Mas pensei: “Preciso deixar isso registrado”. Então quando a FLACSO (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais) e o Emir Sader organizaram o livro sobre os dez anos Lula/Dilma, decidi que meu artigo seria sobre a nova classe trabalhadora e a necessidade de uma reforma tributária, de uma reforma política e de uma reorganização dos movimentos sociais. Eu sei que o meu artigo destoa dos outros, que se referem às conquistas reais e importantes desses dez anos, mas eu achei que tinha um dever político. Voltando precisamente às manifestações: se se opera com a noção de uma nova classe média, quais serão os programas que deverão ser implantados para atender a essa classe? Serão programas de estímulo às montadoras, às empreiteiras imobiliárias, às importadoras, aprofundando ao mesmo tempo o consumo, a competição e o isolamento. E faz-se explodir o inferno urbano. Quando falo no inferno urbano, viso essa concepção de que os programas governamentais devem estar a serviço dessa classe média.


C: Isso explica a sua afirmação de que odeia a classe média?
MC: É.


C: De fato, ter uma casa confortável, andar de avião, comer bem e poder ir ao cinema não são sinais de classe média… É outra coisa querer absolutamente comprar um carro 4×4… É essa classe média que você odeia? Quer dizer, um ideal de consumo que se está construindo?
MC: Quem ia à Europa nos anos 1950-1960 via trabalhadores dirigindo pequenos carros (na França, o famoso “dois cavalos” da Renault; na Inglaterra, o pequeno “biriba” da Morris; na Itália, o pequeno “cinquecento” da Fiat), saindo de férias com a família (em geral para alguma praia), fazendo compras em lojas de departamento populares, enviando os filhos a creches públicas e, quando maiores, à escola pública de primeiro e segundo graus, às escolas técnicas e mesmo às universidades; também via os trabalhadores tendo direito, juntamente com suas famílias, a hospitais públicos e medicamentos gratuitos, e, evidentemente, possuíam casa própria. Era a Europa da social-democracia e da economia keynesiana, quando as lutas anteriores dos trabalhadores organizados haviam levado à eleição de governantes de centro ou de esquerda e ao surgimento do Estado do Bem-Estar Social, no qual uma parte considerável do fundo público era destinada, sob a forma de salário indireto, aos direitos sociais, reivindicados e, então, conquistados pelas lutas dos trabalhadores. E não viria à cabeça de ninguém dizer que os trabalhadores europeus haviam passado à classe média, como se diz hoje dos trabalhadores brasileiros, após 10 anos de políticas de transferência de renda. Mais do que isso, a classe média conservadora (não falo da parte da classe média que se alinha à esquerda) não tolera isso, grita e espuma contra esses direitos dos trabalhadores. É por isso que eu falo nas “três abominações” que definem essa classe média: trata-se de uma abominação política, porque é fascista; uma abominação ética, porque é violenta; e de uma bominação cognitiva, pois ela é ignorante. Eu acho que muito do que as ruas mostraram no Brasil inteiro foram essas três abominações. Não estou celebrando, diferentemente de vários dos meus colegas, que estão dizendo que um novo Brasil começa, que nada será como antes, que o gigante acordou… Pelo contrário, para quem viu a disputa desigual pelo direito à rua entre os manifestantes de esquerda e de direita, talvez valha a pena lembrar o que escreveu Espinosa: não rir, não lamentar, não detestar nem compactuar, mas compreender.



C: Criticando esse ideal de classe média, você critica o governo federal. O que você diria, então, sobre os comentários que a tomam por alguém de postura fisiológica, cega para os problemas do PT e fascinada pelo fetiche do PT?
MC: Vou contar dois episódios. Quando eu estava ainda no governo da Erundína (1989-1993), já no final da administração, houve um congresso do PT. Eu fui no último dia, quando havia deliberações e moções para apresentar na assembleia geral. Entrei na primeira sala, sentei. Disseram algumas coisas. Não concordei e levantei a mão. A pessoa que estava dirigindo os trabalhos disse: “A companheira é delegada”? Eu disse: “Não”. “Então a companheira não pode falar”. Pensei com meus botões: “Entrei na sala errada. Esta não é uma sala petista. Deixe-me sair”. Saí. Entrei numa outra sala, discutia-se outra coisa. Também tive uma discordância e levantei a mão. A pessoa que dirigia me perguntou: “A companheira é delegada?” Eu disse: “Não, mas já participei de tanto Congresso do PT em que a gente fala… Eu não vou votar, porque eu não sou delegada, mas eu vou falar”. “Não, a companheira não pode falar”. Esse congresso era num lugar que tinha um pátio imenso interno grande. Fui, então, para o meio do pátio e comecei a gritar: “Destruíram o PT! O PT acabou! É preciso refazer o PT!”. Fui levada para fora do recinto, porque “a companheira não estava entendendo o congresso”. Bom, eu venho do período em que o PT era a reunião de movimentos sociais e populares, Comunidades Eclesiais de Base, movimentos sindicais, exilados políticos, ex-guerrilheiros, estudantes, professores, escritores, artistas… Nós formávamos o partido e discutíamos tudo; decidíamos tudo. Quando vi o formato que tinha tomado, falei: “virou uma máquina burocrática”. Tanto que, embora filiada e defensora do participo, não participo de mais nada no interior dele, desde 1993, porque não concordo com essa estrutura. Segundo episódio: quando ocorreu o Mensalão e houve toda a crise, surgiu um grupo que propôs a refundação do PT sob a liderança de Tarso Genro; é um grupo que se chama “Mensagem ao PT”. Eu participo desse grupo, que é completamente autônomo. De vez em quando, temos uma ideia e comunicamos uns aos outros. O Juarez Guimarães fez um livro chamado Leituras da Crise. Lá se encontra minha análise crítica do que aconteceu com o PT: máquina burocrática, máquina eleitoral, sem participação das bases, afastado dos movimentos que deram origem a ele e que o fizeram crescer; portanto, um partido que precisa ser refundado. Dizer que eu estou cegada pelo PT, dizer que eu não faço críticas ao PT é coisa de gente que não lê a literatura política. Basta ler a revista Teoria&Debate, o livro do Juarez Guimarães e os artigos que eu publiquei mundo afora para ver que sou extremamente crítica. Mas o fato de eu ser crítica não significa que invalido o partido que vi nascer e que foi a condição do estabelecimento da democracia no Brasil, porque foi o único que introduziu a ideia de direitos sociais, políticos e culturais, pois a democracia se define pela criação e garantia de direitos novos. Eu não abro mão disso. O partido não me traiu (como dizem os que o abandonaram). Ele me encoleriza, me enraivece. Eu quero fazer outro com ele, mudá-lo de cima abaixo. Mas sou petista. Isso faz parte da minha história política, da minha luta e do enorme respeito que tenho pelos grandes militantes ao longo de sua história.

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