quinta-feira, 26 de setembro de 2013

As manifestações segundo Marilena Chauí

Chauí fala sobre manifestações

Capitulo I
por Miguel do Rosário  28/08/2013

Em entrevista à revista Cult, a filósofa Marilena Chauí dá sua opinião sobre as “jornadas de junho”, as grandes manifestações que tomaram conta do Brasil no período.

Revista CULT n˚ 182
A Lucidez de Marilena Chaui

Por Juvenal Savian Filho

Não seria possível não ouvir Marilena Chaui a respeito das manifestações de 2013. Pensadora de importância inestimável na história da cultura brasileira, Marilena chamou a atenção nos últimos anos por ter rompido com a mídia. Depois do tratamento imprudente que a maior parte do jornalismo brasileiro deu a questões políticas graves, Marilena decidiu “não falar mais”. Seu silêncio tornou-se insuportável para os grandes veículos de comunicação. Frequentemente cronistas dizem: “o que Marilena Chaui pensaria sobre isso?”. É óbvia a ironia da pergunta, usada para dar a entender que o silêncio de Marilena se deve ao fato de ela não ter o que dizer diante dos erros do PT e do governo federal, tão defendidos por ela nos últimos 10 anos.
À CULT, porém, Marilena nunca fechou as portas. Muito pelo contrário. E no último domingo de junho, em plena fase das manifestações por todo o Brasil, ela nos acolheu em sua casa, no fim da tarde, para uma conversa franca na qual ela não apenas comenta o sentido das manifestações, com também fala com sinceridade de suas críticas ao PT e ao governo do PT. Não o faz, todavia, com amargura ou ressentimento, mas com a força e a coragem de uma mulher lúcida e clara, engajada numa luta que não se perde nem em posições ligeiras nem em novidades fáceis. Com a generosidade que a caracteriza, ela sabe triar o que é bom e o que deve ser questionado, mas sendo sempre movida pelo bem, pela responsabilidade intelectual e pela lucidez de quem tem experiência. Como dizia Maurice Merleau-Ponty, o intelectual é aquele que “levanta e fala”. Mas, muitas vezes, o levantar e o falar têm sido acompanhados de inconsequências que vão desde a incapacidade de análise até o autoritarismo da arrogância em nome da racionalidade (ou em nome de nada…). Definitivamente, esse não é o caso de Marilena Chaui.
CULT: Qual foi sua primeira reação ao ver tanta gente nas ruas durante as manifestações de 2013?

Marilena Chaui: Um susto! Acompanhei as tentativas de manifestação do Passe Livre na USP e vi que o movimento não conseguia mais do que três gatos pingados para escutar. Nem digo participar da manifestação, mas escutar. Imaginei que iriam para a rua com cinquenta, cem pessoas. Então, levei um susto, pois não tinha entendido a relação entre o que eles estavam fazendo, ou seja, a fórmula clássica da mobilização, e o uso das redes sociais. Se eu soubesse que eles iriam usar as redes sociais, não teria me assustado, pois associaria com outros eventos que já vi no mundo.

C: E como se deu sua compreensão das manifestações?
MC: No primeiro dia, pelo menos em São Paulo, as palavras de ordem eram referentes ao transporte. Depois da primeira manifestação, participei do Conselho da Cidade convocado pelo prefeito Fernando Haddad. Os representantes do Passe Livre foram e falaram. Eles eram cinco e cada um falou 15 minutos. Depois os conselheiros falaram. Todos os conselheiros pediram a revogação do aumento das tarifas. èO secretário municipal de Transportes, Jilmar Tatto, mostrou as planilhas e depois falou o prefeito. Eu imediatamente pensei: se o prefeito revogar, os meninos vão à rua comemorar: se ele não revogar, vai haver uma passeata não só como a primeira, mas sobretudo com incorporação das palavras de ordem das outras cidades. E não deu outra. Algumas pessoas ficaram perplexas; eu não. Diziam: “Como pode haver manifestação? A inflação está sob controle; o desemprego diminuiu; os programas sociais funcionam; há estabilidade econômica e política!” Ou seja, os temas que sempre caracterizaram as manifestações no Brasil estavam ausentes. Eu não fiquei perplexa no que se refere a São Paulo, porque tenho dito há um bom tempo que a cidade está se tornando um inferno urbano. Está impossível viver nela, seja pelo trânsito, pela indecência do transporte coletivo, seja pela explosão demográfica com os condomínios e “shopping centers”. Achei compreensível, e, num primeiro momento, pensei que as manifestações iriam girar em torno dos temas urbanos. Mas quando se viraram contra a política, contra a mediação institucional, aí, sim, fiquei com medo, porque já vi esse filme em 1964 e 1969. A gente sabe o que aconteceu nos anos 1920, na Itália, e nos anos 1930, na Alemanha, sobre a recusa da política.

C: Mas se falou muito que Haddad foi ambíguo. Ele disse que não revogava o aumento das tarifas, mas depois revogou…
MC: Não, ele não foi ambíguo. Ele disse o seguinte: “Se eu revogar, significa que tenho de aumentar o subsídio. Para aumentar o subsídio, vou ter de cortar recursos dos programas sociais. Então, tenho de ver isso com meu secretariado; tenho de analisar onde eu vou mexer para subsidiar e para fazer o corte”. Na verdade, ele pediu um tempo para as pessoas. Não disse que não iria revogar. E foi nessa hora que alguns conselheiros (como os do movimento Afroeducação) e os membros do Passe Livre disseram que não queriam saber de planilha, que queriam a revogação imediata. Então, não houve ambiguidade. Faltou intuição política, pois Haddad poderia ter dito: “Vou revogar, mas convido imediatamente o Movimento Passe Livre para uma reunião comigo e com o secretariado para fazermos um estudo de onde eu vou tirar o subsídio”. Com isso, ele incorporaria o movimento à discussão de outros problemas da cidade e teria sido mais politizador. Haddad deu uma resposta técnica em um momento que pedia uma resposta política.

C: Algumas pessoas dizem que as manifestações tiveram uma deriva à direita. Um dado curioso é que há políticos da oposição, seja de “esquerda”, como os do PSTU e do PSOL, seja de “centro-direita”, como os do PSDB, que têm se servido das manifestações para alimentar um discurso anti-PT e anti-Dilma…Você vê uma deriva à direita ou uma deriva anti-governo?
MC: Não vejo nem uma coisa nem outra neste momento. Não posso dizer que amanhã não vá ser isso. O que vejo neste momento é que, como o PSOL e o PSTU não têm representatividade social, pois são minúsculos, o crescimento da manifestação de rua fez com que eles julgassem que poderiam se apropriar dela. Não houve liderança de esquerda, mas uma tentativa, desses partidos, de se apropriar de um movimento de massa que seriam incapazes de realizar. A mesma coisa ocorre com a direita, que não tem força de mobilização, operando sempre por lobby e por meio da repressão (basta ver como opera o lobby dos ruralistas contra o MST e os índios). A chamada oposição de centro-direita está caindo pelas tabelas (basta lembrar o que aconteceu com o movimento do PSDB, o “Cansei”), e por isso, depois de investir contra os movimentos de rua por meio da repressão policial, tenta se apropriar deles porque julga que podem desestabilizar o governo Dilma. Afinal, a primeira atitude do Geraldo Alckmin foi chamar a polícia. Na USP, quando há manifestações, a primeira atitude do reitor é chamar a polícia. Não há nenhum vínculo real entre os partidos chamados de oposição, particularmente o PSDB, e os movimentos de massa. Então, o que temos é: o movimento correndo pelo meio e duas tentativas extremas de apropriação.

C: Isso favorece a apropriação pela direita?
MC: Essa é a minha preocupação. Há elementos que favorecem a apropriação e a manipulação pela direita: o primeiro é o fato de os manifestantes confundirem o que significa ter uma direção e o que significa ter uma liderança. Como eles se organizam em termos de autogestão e horizontalidade, sem dirigentes e dirigidos, eles identificam ter um rumo com ter um líder. Não percebem que não é a mesma coisa. As manifestações, por enquanto, estão sem rumo; têm palavras de ordem as mais variadas, mas não um rumo, o que as torna fragéis e apropriáveis pela mídia e pela direita. O segundo elemento é o que eu chamo de pensamento mágico: os manifestantes usaram as redes sociais, ou seja, um instrumento do qual são apenas usuários e de que não têm conhecimento técnico aprofundado nem qualquer controle econômico. As redes estão inseriadas numa gigantesca estrutura técnico-científica, econômica e com vigilância e controle geopolíticos (o caso que acaba de ser revelado da espionagem norte-americana sobre todo o planeta não pode ser minimizado), de maneira que, sob a aparência de ser uma alternativa libertária, ela também insere os usuários no mundo do controle e da vigilância. Penso que o caso do Egito é um alerta, embora, evidentemente, é um caso que não se compara ao nosso, pois lá a luta está mergulhada nos problemas postos pelas ditaduras e pelo fundamentalismo religioso, e, aqui, se dão numa democracia como luta por direitos. Mas o estopim lá (como em Nova York, na Wall Street) foi o uso das redes sociais. Há ainda um outro aspecto das redes que me pareceu muito claro nas manifestações brasileiras, ou seja, como o usuário não conhece bem o modo de funcionamento das redes, e como para ele basta apertar um botão para que coisas aconteçam, passa-se a ter com a realidade uma relação do mesmo tipo: eu quero, então acontece. Como num ato mágico.

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