≫O golpe de 64 dizia-se "em defesa da
democracia", é verdade. Mas o cinismo da alegação não resistia à evidência
dos tanques na rua, às perseguições e prisões nem aos crimes constitucionais (todos os militares do golpe haviam jurado fidelidade à
Constituição que acabavam de trair: sem exceção, perjuros impunes). Todos os golpes tentados ou consumados antes, incluída
a Proclamação da República, tiveram na formação aquele mesmo roteiro, com
diferença de graus. A força das armas desmoralizava a hipocrisia das palavras.
≫Os militares, hoje, não são mais que uma lembrança do que
foi a maior força política do país ao longo de todo o século 20. Ao passo em
que a política afunda na degeneração progressiva, nos últimos 20 anos os
militares evoluíram para a funcionalidade o mais civilizada possível no
militarismo ocidental. A aliança de civis e militares no golpismo foi desfeita.
A hipocrisia do lado civil não tem mais quem a encubra, ficou visível e
indisfarçável.
≫Há apenas cinco dias, Michel Temer fez uma conceituação do
impeachment de Dilma Rousseff. A iludida elegância das suas mesóclises e outras
rosquinhas faltou desta vez (ah, que delícia seria ouvir Temer e Gilmar Mendes
no mesoclítico jantar que tiveram), mas valeu a espontaneidade traidora. Disse
ele que o impeachment de Dilma Rousseff é uma questão "política, não de avaliação
jurídica deles", senadores. Assim tem sido, de fato. Desde antes de
instaurados na Câmara os procedimentos a respeito: a própria decisão de
iniciá-los, devida à figura única de Eduardo Cunha, foi política, ainda que por
impulso pessoal.
≫Todo o processo do impeachment é, portanto, farsante.
Como está subentendido no que diz o principal conspirador e maior beneficiado
com o afastamento de Dilma. Porque só seria processo autêntico e legítimo o que
se ocupasse de avaliação jurídica, a partir da Constituição, de fatos
comprovados. Por isso mesmo refere-se a irregularidades, crimes,
responsabilidade. E é conduzido pelo presidente, não de um partido ou de uma
Casa do Congresso, mas do Supremo Tribunal Federal.
≫As 441 folhas do relatório do senador Antonio Anastasia
não precisariam de mais de uma, com uma só palavra, para expor a sua conclusão
política: culpada. O caráter político é que explica a inutilidade, para o
senador aecista e seu calhamaço, das perícias técnicas e pareceres jurídicos
(inclusive do Ministério Público) que desmentem as acusações usadas para o
impeachment.
≫Do primeiro ato à conclusão de Anastasia, e até o final,
o processo político de impeachment é uma grande encenação. Uma hipocrisia
política de dimensões gigantescas, que mantém o Brasil em regressão descomunal,
com perdas só recompostas, se o forem, em muito tempo –as econômicas, porque as
humanas, jamais.
≫E ninguém pagará por isso. Muito ao contrário.
Jânio de Freitas na Folha de S.Paulo
Alfio Bogdan - Físico e Professor
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