Norberto Bobbio.
MERITOCRACIA.
I. DEFINIÇÕES. — Em geral, por Meritocracia se entende o
poder da inteligência que, nas sociedades industriais, estaria substituindo o
poder baseado no nascimento ou na riqueza, em virtude da função
exercida pela escola. De acordo com esta definição, os méritos dos indivíduos,
decorrentes principalmente das aptidões intelectivas que são confirmadas no
sistema escolar mediante diplomas e títulos, viriam a constituir a base
indispensável, conquanto nem sempre suficiente, do poder das novas classes
dirigentes, obrigando também os tradicionais grupos dominantes a amoldarem-se. Postula-se, dessa forma, o
progressivo desaparecimento do princípio da ascription (pelo qual as posições
sociais são atribuídas por privilégio de nascimento) e a substituição deste pelo
princípio do achievement (pelo qual as posições sociais são, ao invés, adquiridas graças à capacidade individual):
a Meritocracia se apresenta precisamente como uma sociedade onde vigora
plenamente o segundo princípio.
Além disso, a Meritocracia se ajusta ao ideal
de igualdade de possibilidades, que já constava no art. 6° da Declaração dos
direitos do homem e do cidadão, de 1789, pelo qual os cidadãos ". . .podem
ser igualmente admitidos a todas as dignidades, postos e empregos públicos,
segundo sua capacidade e sem outra distinção que a de suas virtudes e
inteligência". Este princípio, incontestável no plano formal, é, na
realidade social, de difícil aplicação, tanto que a igualdade de oportunidades
é para alguns sociólogos (Bourdieu e Passeron) uma mera ideologia, apta a
justificar a permanência das desigualdades, tornando-as aceitáveis a todos. De
fato, de acordo com estes autores, o sistema educacional, ao qual cabe
sancionar as aptidões de cada um, funcionaria, na realidade, como mecanismo de reprodução
da estratificação existente por causa dos inevitáveis fatores sociais que
condicionam o êxito escolar. Por outras palavras, a seleção escolar meritocrática
seria impossível de ser realizada e a função do sistema de ensino seria
exatamente a de fazer com que pareçam naturais as diferenças de capacidade,
quando, na realidade, essas diferenças decorrem da diferenciação social
preexistente.
II. O ADVENTO DA MERITOCRACIA. — Michael Young, com um
recente ensaio, que propõe, em forma satírica, a utopia sociológica do advento
de uma Meritocracia, contribuiu notavelmente para que entrasse em uso esse
termo. Nesta obra é descrita a Inglaterra do ano 2033, como uma sociedade perfeitamente
orientada para a maximização da eficiência produtiva, mediante o completo
emprego dos recursos intelectuais da população, oportunamente valorizados pela
escola. Young imagina que a aceitação do princípio do mérito, generalizando-se,
leve à constituição de uma classe dirigente de homens perfeitamente selecionados, que, após numerosos e aprimorados testes de
inteligência, puderam ter acesso aos mais altos graus da instrução, assumindo
em seguida todos os cargos de direção. Com base em critérios científicos, os
inteligentes são separados dos outros, tornando realidade duas classes
claramente distintas, se bem que de tipo novo e com mobilidade genealógica
completa. A classe superior, com quociente intelectual elevado, tem direito a
uma boa instrução e a notáveis privilégios econômicos e sociais; a classe
inferior, ao invés, recebe uma instrução elementar que, devido à extensão da automação, não
lhe permitirá sequer o trabalho operário, mas somente o trabalho doméstico nas residências
dos superdotados. O problema da igualdade e da instrução é apresentado de forma
humorística: o erro consistiria exatamente em se ter considerado fundamental a
igualdade das possibilidades, que no mundo atual, dominado pelos valores da
eficiência produtiva da indústria, leva inevitavelmente a uma desigualdade cada
vez maior. No livro se critica a insignificância da escala de valores da
Meritocracia, almejando uma sociedade sem classes, isto é, uma sociedade que
"... terá em si uma pluralidade de valores, segundo os quais se comportará.
De fato se nós avaliássemos as pessoas não somente pela sua inteligência e
cultura, pela sua ocupação e seu poder, mas também pela sua bondade e coragem,
pela sua imaginação e sensibilidade, pelo seu amor e generosidade, as classes
não poderiam mais existir" (Young, p. 174).
O ideal de igualdade continua válido e é obtido através de
uma instrução capaz de dar a todos uma boa formação de base, transferindo para
bem mais adiante toda diferenciação funcional dos estudos. A atitude
meritocrática, ao invés, representa o contrário de igualdade e de democracia,
mesmo que, à primeira vista, isto não apareça claramente, porque uma seleção
baseada na avaliação científica da inteligência e dos esforços de cada um pode
parecer justa; o resultado, porém, será somente uma massa passiva cada vez mais
desligada da elite intelectual.
III. AVALIAÇÕES CRÍTICAS DA MERITOCRACIA. —
Em contraste com avaliações críticas como a de Young
encontram-se juízos positivos como o de Parsons, que, recentemente,
referindo-se explicitamente à Meritocracia, debateu o valor da atual
"revolução
no campo da instrução", que constituiria como que uma síntese
das revoluções precedentes: a industrial e a democrática. è De fato, igualdade
de oportunidades [ideológica] e igualdade política [utópica] dos cidadãos —
ideológica a primeira e utópica a segunda — encontrariam, através da mediação do
sistema educacional, uma maior possibilidade de realização; todavia
as desigualdades permaneceriam, embora menos arbitrárias.
As posições favoráveis à Meritocracia estão ligadas a um
igualitarismo formal que advoga o reconhecimento dos méritos de cada um,
enquanto
muitas das posições contrárias se baseiam num igualitarismo
nivelador que pretende negar as diferenças entre os indivíduos. É diferente,
ainda, a posição sobre o problema que se pode deduzir da análise marxista.
Marx, de fato, na Crítica ao programa de Gotha, afirma a necessidade, para a sociedade
comunista do futuro, de considerar as diferenças individuais não pela óptica
do reconhecimento diferencial dos méritos, mas pela da atribuição
"a
cada um segundo suas necessidades".
►São aceitas,
portanto, as diferenças naturais, mas se rejeita a sanção social delas: trata-se de reconhecê-las
para impedir que "desiguais aptidões individuais e, portanto, capacidades
de rendimento" se transformem em
privilégios. è A respeito da
Meritocracia, o problema é colocado numa alternativa radical, contrapondo dois
tipos claramente antitéticos [antagônicos], de reconhecimento social, o dos
méritos e o das necessidades.
Nenhum comentário:
Postar um comentário