quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

A FÉ NO GRANDE E A REALIDADE DO PEQUENO


FB de Maria Fernanda Arruda.

A tragédia envolvendo a figura do Sr. “João de Deus”, famoso médium brasileiro envolvido em acusações de abuso sexual por mais de duzentas mulheres, por enquanto, deve necessariamente nos levar a várias reflexões de fundo.
Não é novidade alguma que em nossa sociedade a figura feminina sofre de uma fragilização crônica e adoecedora. Desde a “solarização” das religiões, ou seja, a conversão das antigas religiões lunares e matriarcais para as solares e patriarcais (A ópera “A Flauta Mágica” descreve bem esta simbologia) e a consequente demonização da mulher e toda a extensão de seu intelecto e instintos, a mulher foi trazida a uma condição realmente inferior, o que é fartamente alimentado pelo machismo cultural, estrutural e brutal que ainda nos acomete.
Também não é novidade que as relações de poder na nossa sociedade despertam, em particular nos detentores masculinos de poder, o perverso instinto de dominação sexual sobre a mulher, e o que não faltam são exemplos recentes como o caso de Harvey Weinstein, um dos poderosos de Hollywood. Os casos de pedofilia na Igreja Católica (e em outras também) exemplificam também estes comportamentos, pelos mesmos motivos.
A prática médica tradicional é recheada de exemplos, e não faltam denúncias nos conselhos de ética médica a esse respeito. Outras relações de poder, como o meio empresarial e o meio político reforçam ricamente as narrativas.
Voltando à reflexão, nossos sistemas de valores e crenças são fortemente contaminados pela ideia de um Deus atuante, salvador e infinitamente superior ao ser humano, e quando isso é sobreposto a um sistema onde a dominação de homens sobre mulheres é absolutamente naturalizado, estão dadas as condições para todo o tipo de abuso e opressão. Não é de se surpreender, portanto, que muitas mulheres, tendo sido inculcadas desde a mais tenra idade com a ideologia de gênero mais perversa e prevalente que há muitos séculos campeia por nossa cultura e sociedade, em um momento de maior fragilidade ainda que é a doença ameaçadora à vida, mal se apercebam das investidas que certos agentes de suposto saber e poder podem lhes impor. A dificuldade de reação imediata, e/ou da posterior denúncia é mais do que sintoma de um sistema de crenças no qual não é dado à mulher a devida dignidade, autoestima e empoderamento. Temos sim, na nossa cultura, uma fábrica de vítimas e uma fábrica de algozes em pleno andamento e função. Afinal, de alguma forma, homens também são vítimas desta construção de poder, diante do qual se corrompem sem muitas dificuldades produzindo assim estas deploráveis situações.
A presente virada conservadora e fundamentalista no Brasil surge como “tempestade perfeita” neste cenário, desgraçadamente com apoio da sociedade, que por sua vez, fartamente amedrontada pelas falsas ameaças de “comunismo” e “corrupção”, anseia por respostas simples, fortalecimento das autoridades, enfraquecimento da cidadania, e em última análise, da exclusão de responsabilidade de cada um na sociedade. Em síntese, a fé no grande que nos apequena.
Há que se respeitar as crenças e religiões, bem como as formas complementares de medicina, no que se inclui a espiritual. Entretanto, nenhum sistema de crenças formará indivíduos saudáveis, autônomos e verdadeiramente livres se não houver o contrapeso de uma teologia de busca de um Deus interno, da vida como manifestação e transcendência onde todos os indivíduos tem igual valor, onde todas as formas de vida tenham também valor e lugar, e onde o sagrado possa ser vivido internamente, e não apenas em um templo controlado e opressor. Não há saúde mental e física possíveis na ausência destes sentidos.
A persistirmos com o sistema atual, onde educação e religião se confundem com opressão, observaremos com frequência a sucessão de casos como o da atual tragédia.
Alfio Bogdan - Físico e Professor 


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