Boaventura S Santos (*)
Quando o respeitado Alto
Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Zeid Ra’ad Al Hussein,
renunciou ao cargo em 2018, a opinião pública mundial foi manipulada para não
dar atenção ao fato e muito menos avaliar o seu verdadeiro significado. A sua
nomeação para o cargo em 2014 fora um marco nas relações internacionais. Era o primeiro asiático, árabe e muçulmano a ocupar o cargo e desempenhou-o de maneira brilhante até
ao momento em que decidiu bater com a porta por não querer ceder às pressões
que desfiguravam o seu cargo, desviando-o da sua missão de defender as vítimas
de violações de direitos humanos para o tornar cúmplice de tais violações por
parte de Estados com importância no sistema mundial.
No seu
discurso e entrevistas de despedida mostrava-se revoltado com o modo como os
direitos humanos se vinham transformando em párias das relações internacionais,
empecilhos nas estratégias autoritárias e unilaterais de domínio
geoestratégico. Reconhecia que o exercício do seu cargo o obrigava a opor-se à
maioria dos países que tinham aprovado a sua nomeação sob pena de trair a sua
missão. Chamava também a atenção para o fato de o perfil da ONU refletir
fielmente o tipo dominante de relações internacionais e que, por isso, tanto podia
ser uma organização brilhante como uma organização patética, dando a entender
que este último perfil era o que começava a vigorar. Era um grito de alerta
para os perigos que o mundo corria com o avanço de populismos nacionalistas de
direita e de extrema-direita que há muito vinha sinalizando. Ao denunciar a crescente
vulnerabilidade de uma boa parte da população mundial a violações graves de
direitos humanos, tornou-se ele próprio vulnerável e teve de abandonar o cargo.
O grito de alerta caiu no silêncio da diplomacia, dos alinhamentos e das conveniências
típicas do internacionalismo patético que ele denunciara.
Tudo isto ocorreu no ano em
que se celebravam os setenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos
e em que muitos, eu próprio incluído, defendiam a necessidade de uma nova
declaração, mais robusta e mais verdadeiramente universal. Essa necessidade
mantém-se, mas neste momento o mais importante é identificar as forças e os
processos que estão a bloquear a declaração atual e a fazer dela um documento
tão descartável quanto as populações vulneráveis a violações dos direitos
humanos que a declaração pretendia defender. É bom lembrar que esta declaração
visava mostrar a superioridade moral do capitalismo frente ao comunismo. O
capitalismo prometia, tal como o comunismo, o crescente bem-estar de populações
cada vez maiores, mas fazia-o com respeito dos princípios da Revolução
Francesa: igualdade,
liberdade e fraternidade. Era o único sistema compatível com a
democracia e os direitos humanos.
Ora a onda conservadora e reacionária
que assola o mundo é totalmente oposta à filosofia que presidiu à elaboração da
Declaração Universal e constitui uma ameaça séria à democracia. Assenta na
exigência de uma dupla disciplina autoritária e radical que não se pode impor
por processos democráticos dignos do nome. Trata-se da disciplina econômica e da disciplina ideológica. A disciplina econômica
consiste na imposição de um capitalismo auto-regulado, movido exclusivamente
pela sua lógica de incessante acumulação e de concentração da riqueza, livre
restrições políticas ou éticas, em suma, o capitalismo que dantes designávamos
como capitalismo selvagem. A disciplina ideológica consiste na inculcação de
uma percepção ou mentalidade colectiva dominada pela existência de perigos
iminentes e imprevisíveis que atingem todos por igual e particularmente os
colectivos que nos estão mais próximos, sejam eles a família, a comunidade ou a
nação. Tais perigos criam um medo inabalável do estranho e do futuro, uma
insegurança total perante um desconhecido avassalador. Em tais condições, não
resta outra segurança senão a do regresso ao passado glorioso, o refúgio na
abundância do que supostamente fomos e tivemos.
Ambas as disciplinas são de
tal ordem autoritárias que configuram duas guerras não declaradas contra a
grande maioria de população mundial, as classes populares miserabilizadas e as
classes médias empobrecidas. Esta dupla guerra exige um vastíssimo complexo
industrial ideológico-mental espalhado por todo o mundo, incluindo as nossas
vizinhanças, as nossas casas e a nossa intimidade. São três as fábricas
principais deste complexo, a fábrica do ódio, a fábrica do medo e a fábrica da
mentira. Na fábrica do ódio produz-se a necessidade de criar inimigos e de
produzir as armas que os eliminem eficazmente. Os inimigos não são aqueles
poderes que o pensamento crítico esquerdista satanizou, o capitalismo, o
colonialismo e o hétero-patriarcado. Os verdadeiros inimigos são aqueles que
até agora se disfarçaram de amigos, todos aqueles que inventaram a ideia de
opressão e mobilizaram os ingênuos (infelizmente uma boa parte da população
mundial) para a luta contra a opressão. Disfarçaram-se de democratas, de
defensores dos direitos humanos, do Estado de direito, do acesso ao direito, da
diversidade cultural, da igualdade racial e sexual. Por isso são tão perigosos.
O ódio implica a recusa de discutir com os inimigos. Os inimigos eliminam-se.
Na fábrica do medo produz-se
a insegurança e os artefatos ideológico-mentais que produzem a segurança,
segurança que para ser infalível necessita de vigilância permanente e de
constante renovação das tecnologias de segurança. O objectivo da fábrica do
medo é erradicar a esperança. Tornar o atual estado de coisas no único possível
e legítimo contra o qual só por loucura ou utopia destemperada se pode lutar.
Não se trata de ratificar tudo o que existe. Trata-se de limpar do que existe
tudo o que impediu o passado glorioso de se perpetuar. Por sua vez, na fábrica
da mentira produzem-se os factos e as ideias alternativas a tudo o que tem passado
por verdade ou busca de verdade, como sejam as ideias da igualdade, da
liberdade negativa (liberdade de constrangimentos) e positiva (liberdade para
realizar objetivos próprios, não impostos nem tele-comandados), do Estado
social de direito, da violência como negação da democracia, do diálogo e
reconhecimento do outro como alternativa à guerra, dos bens comuns como a água,
a educação, a saúde, o meio-ambiente saudável. Esta fábrica é a mais
estratégica de todas porque é aquela em que os artefatos ideológico-mentais têm
de ser embalados disfarçados de não-ideológicos. A sua maior eficácia reside em
não dizerem a verdade a seu respeito.
A proliferação
destas três fábricas é o motor da onda reacionária que vivemos. A proliferação
tem de ser a maior possível para que nós próprios nos tornemos empreendedores
do ódio, do medo e da mentira; para que deixe de existir diferença entre
produção, distribuição e consumo. Os meios de comunicação hegemônicos, a
“comentariologia”, as redes sociais e seus algoritmos e as igrejas seguidoras
da teologia da prosperidade são poderosas linhas de montagem. Mas isto não
significa que as peças que circulam nas linhas de montagem sejam produzidas
anarquicamente em todo o mundo. Há centros de inovação e de renovação
tecnológica para a produção massiva de artefatos ideológico-mentais cada vez
mais sofisticados. Esses centros são os silicon valeys do ódio, do medo
e da mentira. As tecnologias foram originalmente desenvolvidas para servir dois
grandes clientes, os militares e suas guerras e o consumo de massa, mas hoje os
clientes são muito mais diversificados e incluem a manipulação psicológica, a
opinião pública, o marketing político, a disciplinação moral e religiosa. A
sofisticação tecnológica está orientada para colapsar a distância com a proximidade
(tweets e soundbites), a institucionalidade com a subliminaridade (mediante a
produção em massa da máxima personalização), a verdade e a mentira ou a
meia-verdade (hiper-simplicações, banalização do horror, transmissão seletiva
de conflitos sociais).
No momento em
que se diz estarmos em vésperas de uma nova revolução tecnológica dominada pela
inteligência artificial, a automação e a robótica, dá ideia que as incessantes
fábricas do ódio, do medo e da mentira estão a querer orientar a revolução
tecnológica no sentido da maior concentração do poder econômico, social,
político e cultural e, portanto, no sentido de criar uma sociedade de tal
maneira injusta que a justiça se transforme numa monstruosidade repugnante. É
como se antes da chegada massiva da inteligência artificial a inteligência
natural se fosse artificializando e automatizando para coincidir e se confundir
com ela.
(*) Sociólogo, diretor do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra.
https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2019/02/as-incessantes-fabricas-do-odio-do-medo-e-da-mentira-por-boaventura-de-sousa-santos/
Alfio Bogdan - Físico e Professor
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